Incertezas: o canário na mina
Rui Machado Gomes
No final desta crise, para além das estatísticas de infetados e óbitos, das curvas exponenciais e sigmoides, haverá uma curva para a desigualdade que não pode ficar de novo no pé de página das catástrofes: os mais pobres morreram mais, os grupos étnicos minoritários foram mais atingidos pela letalidade, os mais vulneráveis perderam mais rapidamente o emprego e o mínimo necessário à sua sobrevivência
O mundo está hoje unido pelo espectro da incerteza. Sentimento que está habitualmente associado à impotência perante forças maiores que nós e que não controlamos, envia-nos também sinais de transformações históricas decisivas com origem no reconhecimento de vulnerabilidades incapacitantes dos sistemas sociais. A incerteza funciona muitas vezes como o canário na mina.
Desde logo a incerteza quanto ao prosseguimento da vida. A humanidade viveu nos últimos dois meses a situação de maior risco global percebido das várias gerações vivas. Uma parte desse risco, que se transformou rapidamente em medo, teve a sua fonte na ansiedade informativa e nas suas contradições.
Incerteza generalizada: do leigo ao epidemiologista, do cidadão comum ao líder político, do administrador público de saúde ao virologista, todos vieram num ou noutro momento confessar o reduzido conhecimento do vírus e a incapacidade de controlar a curto prazo os seus efeitos com medicamentos ou de prevenir a infecção através da vacinação.
Na incerteza total sobraram os números totalitários que ocuparam os dias do confinamento. Cálculos e modelos epidemiológicos foram servindo de apaziguadores da angústia. Mas nem os números trouxeram o consenso entre especialistas.
Incertezas na economia. A economia parou numa parte importante das fileiras produtivas, quer do lado da oferta quer do lado da procura. As únicas fileiras que se mantiveram intactas e até se ampliaram foram a economia das coisas e das pessoas no sector da saúde, a economia do abastecimento e distribuição alimentar e a logística que garantiu com alguns sobressaltos a continuidade das cadeias de distribuição.
A situação provocou imediatamente milhões de desempregados em todo o mundo, os grupos sociais mais vulneráveis afundaram-se na pobreza em poucas semanas, empresas nacionais e multinacionais recorreram ao estado através de mecanismos vários, incluindo o discutível lay-off que está a colocar uma pressão enorme nos sistemas de segurança social.
Se pensarmos nas consequências económicas e sociais da crise pandémica o panorama de incerteza é ainda pior do que o da saúde. Entre os que confessam saber que nada sabem, até aos que se deitam a adivinhar o futuro sem ter uma única resposta para o presente, tivemos de tudo. Mas uma coisa pareceu evidente para a opinião pública: quem perdeu mais no imediato foram aqueles que já eram mais vulneráveis: os que tinham salários mais baixos, com menos qualificações e com mais filhos.
Incertezas no funcionamento das instituições. A nível global as instituições formais como a ONU ou a OMS não se mostraram suficientemente capazes de constituir uma voz consensual a nível mundial. Torpedeada diariamente por vozes nacionalistas, empenhadas em guerras comerciais e de projecção do poder imperial, a OMS viu a sua voz diminuída, deixando a gestão da crise global aos governos e administrações de saúde nacionais.
Na UE a incapacidade de prover segurança continental manteve-se no mesmo estado comatoso que já se conhecia de crises anteriores. No momento atual ganham os egoísmos nacionais e o salve-se quem puder. A assimetria de poder no contexto europeu é evidente: os mais ricos, os que ganharam com a crise das dívidas soberanas, embora em minoria, estão a conseguir impor um caminho que anuncia futuros ciclos austeritários.
Mas a vulnerabilidade das instituições nacionais também se revelou. Desde logo foi abalado o pilar democrático. Os autoritarismos instalados na Europa central aprofundaram-se na Polónia e Hungria. Na maior parte dos países foi declarado o estado de exceção, que suspendeu uma parte importante das liberdades e garantias. A vigilância digital estatal cavalgou à velocidade da geolocalização consumista, que já socializara as populações na comodidade das soluções para a vida quotidiana, ainda que à custa da privacidade e da liberdade. O lado mais fraco das relações laborais viu limitado em muitos casos quer o seu poder de participação e negociação quer o de recurso à greve.
Porém, desta vez o sentimento de vulnerabilidade amplificado pela incerteza arrastou consigo uma perceção generalizada, embora ainda silenciosa, das desigualdades que lhe subjazem.
Desigualdades de condições de vida e de proteção da vida. As vozes que reconheceram em público que o principal determinante do nível de proteção da saúde é a condição económica e social assimétrica dos países e das pessoas, foram muitas e vieram de todos os quadrantes: os indicadores de saúde da OMS registam diferenças abissais entre países (Portugal tem 42 camas UCI/1Milhão hab., enquanto a Alemanha tem 292) (); a nível nacional o OP-Edu verificou que mais de 1/3 dos alunos do ensino obrigatório ficou afastado do ensino não presencial por ausência de alternativa à infoexclusão; o Colabor relatou que os que mais perderam emprego e rendimento foram os que já se encontravam numa situação material mais difícil.
No final desta crise, para além das estatísticas de infetados e óbitos, das curvas exponenciais e sigmoides, haverá uma curva para a desigualdade que não pode ficar de novo no pé de página das catástrofes: os mais pobres morreram mais, os grupos étnicos minoritários foram mais atingidos pela letalidade, os mais vulneráveis perderam mais rapidamente o emprego e o mínimo necessário à sua sobrevivência, os que já tinham condições de habitação precárias viram a sua situação piorar, os que já lutavam para sobrevirem no sistema de ensino obrigatório perderam de um dia para o outro o contacto com a vida escolar por mais de 6 meses.
O que é novo desta vez é que à incerteza da economia se juntou uma repentina e inesperada consciência do modo assimétrico como ela se repercutiu entre os diferentes grupos sociais: 67% dos que reponderam ao questionário do OP-Edu consideraram que a pandemia prejudicou a igualdade de oportunidades e sobretudo a aprendizagem dos alunos com menos recursos económicos.
Os de cima parece que já não conseguem esconder as vulnerabilidades do capitalismo. E os de baixo estão a tomar consciência das desigualdades estruturais que ele provoca. Estas situações são típicas de sociedades em que o dínamo do tempo histórico pode acelerar e provocar mudanças. Quais serão os atores desse tempo é o que veremos nos próximos meses e anos. E aí também reina a incerteza.
Publicado no jornal Expresso, 13 de Maio de 2020