Artigo

Economia política para pessoas comuns: perguntas e respostas da educação à economia

Rui Machado Gomes | UC | Centro de Estudos Sociais

A economia é demasiado importante para ser deixada apenas aos economistas. Este é o princípio que deveria guiar também todas as outras políticas públicas. Sou investigador e professor há mais de 30 anos na área da educação e nunca critiquei alguém por emitir opinião ou fazer propostas de fora da minha especialidade. É assim que deve ser em sociedades abertas: a participação não está fechada aos leigos e ao cidadão comum. É por isso que um confesso não especialista em economia se acha em condições de se dirigir a outros não especialistas em economia.
Em qualquer caso, quando se intervém no espaço público existe uma obrigação de nos informarmos e de estudarmos aquilo de que falamos. Eu fiz antes de tudo esse trabalho de casa. E a primeira coisa que havia a fazer era encontrar as boas perguntas, porque não há boas respostas se as perguntas forem más. Perguntas de pessoas comuns, umas simples outras difíceis, mas que exigem respostas claras e tão complexas quanto as perguntas o exigirem.
No caso presente as perguntas pretendem pôr em diálogo a educação e a economia. Para alguns será um arrojo, para outros uma vantagem. Sempre achei uma vantagem que leigos e não especialistas fizessem perguntas difíceis à educação e aplico a mesma consideração à economia. Por duas razões: a primeira remonta à repetida definição do anedotário economês segundo a qual o trabalho dos economistas se define por ocuparem metade do tempo a elaborar modelos explicativos e preditivos e outra metade a explicar porque razão os modelos falharam. Com efeito, a última década de crise financeira, económica e social está cheia de provas deste dito espirituoso.
A segunda razão é mais importante porque abre a porta da economia política. Enquanto as correntes da economia neoclássica olham para a economia com lentes de reduzir, vendo sobretudo empresas e mercados, o cidadão comum talvez tenha maior sensibilidade para perceber o verdadeiro alcance da noção de economia política.
Uso para início de conversa uma definição simples e útil de economia política, segundo a qual ela trata do modo como fazer escolhas políticas a partir de recursos escassos, com usos alternativos. Ou seja, a economia não é um dogma em que a partir da mesma informação se chega às mesmas conclusões e às mesmas medidas económicas. Quer no início, quando se faz o diagnóstico, quer no fim, quando se definem políticas, existem escolhas em função dos impactos sociais pretendidos em todas as áreas: na produção, distribuição e acumulação de riqueza; nos padrões de consumo e nas condições de vida das diversas classes sociais; na redução das desigualdades sociais e na política de rendimentos; na relação entre o mercado e o Estado; na relação entre a educação e o mercado de trabalho. A economia política pressupõe a dissipação do estatuto de especialista em detrimento de um processo de decisão horizontal que deve ter lugar a partir dos princípios da igualdade e equidade que são próprios da cidadania.
Nos últimos dias assistimos a um vaivém de reuniões do governo com grupos de académicos e técnicos em que se tem abusado desta noção de especialista para legitimar as suas decisões futuras, quer no campo da epidemiologia quer no campo da economia, dando um aval de tipo tecnocrático ao governo. Não é com esse estatuto nem com essa pretensão que faço a pergunta e dou a resposta que se segue. A primeira de outras que serão feitas em futuros artigos.
Quais os impactos sociais e económicos que a fuga de cérebros dos anos da crise financeira estão a ter na actual crise pandémica?
Entre 2013 e 2015 coordenei o projecto Bradramo (1) que, entre outras coisas, analisou quais os motivos económicos que originaram a emigração portuguesa qualificada para países europeus centrais. Quisemos saber também qual o impacto macroeconómico associado à emigração desta força de trabalho qualificado e estamos a iniciar um projecto que pretende analisar qual o retorno económico e social para o país que fez a formação, se é que ele existe, e quais os ganhos nos países de acolhimento.
Retomo algumas conclusões deste estudo para interpretar o que está a acontecer hoje à luz dos acontecimentos vividos em Portugal entre 2010 e 2015. E isto é economia política.
Quer os testemunhos recolhidos nas entrevistas quer os dados resultantes do questionário aplicado em 2014são muito claros quando descrevem as vantagens individuais da emigração (1). O conjunto dos factores que motivam a emigração confirmam a existência de sincronia entre os factores de rejeição da situação de falta de emprego, precariedade e baixos salários em Portugal e de atracção pelos salários mais elevados, conteúdos de trabalho adequados à formação, estímulos ao desenvolvimento da carreira e realização profissional nos países de acolhimento. Ou seja, do ponto de vista da relação custo-benefício individual, a decisão de emigrar é racional e tida como útil em face dos riscos que comporta (afastamento familiar, etc).
Mas o país ficou a perder e muito, quer no curto quer no longo prazo. O valor perdido pelo êxodo definitivo ou transitório de milhares de pessoas que tinham a possibilidade de engrossar a economia e a sociedade do conhecimento nativa, mede-se em menor inovação científica e tecnológica, em menos capacidade de inovação organizacional e em dificuldade acrescida de alterar relações de produção. Calculámos também o valor das perdas económicas, considerando apenas os custos da formação, públicos e privados, e os custos de oportunidade para o stock de emigrantes qualificados em 2010, ainda antes do aumento do fluxo dos anos 2010-2015, e estimámos um valor na ordem dos 11,5 mil milhões de USD (2).
Argumentam alguns economistas que as perdas do investimento em formação podem ser compensadas parcialmente pelo envio de remessas destes emigrantes e/ou pelos acrescentos de produtividade obtidos num eventual retorno depois de obtidas outras experiências e competências que acrescentem valor à formação inicial. Estes argumentos que, no plano teórico são plausíveis, apresentam evidentes dificuldades de demonstração empírica no caso em apreço. Desde logo porque não se conhecem evidências da existência de um volume de remessas significativo, mas também porque mais de metade dos inquiridos declaravam a intenção de não regressar (62,9%) e a transição pendular ou o regresso definitivo a Portugal no período de seis anos considerado no questionário era referida por menos de 10% da amostra inquirida. Nada nos indicava nem indica, por conseguinte, que estejamos na presença de um movimento de emigração transitória.
Para além destas evidências empíricas que carecem de maior verificação em estudos de natureza longitudinal, cabe ainda discutir o problema conceptual sobre o modelo de sociedade que se pretende construir. Com efeito, a apresentação das remessas como uma forma de compensação procede de um padrão económico típico de outros períodos do “atraso português”, em que Portugal trocava a sua força de trabalho, bastante menos qualificada nos anos 60, pelo envio de remessas que, desse modo, maquilhavam as incapacidades endógenas de desenvolvimento.
Não desconhecemos que a mobilidade internacional faz parte da compressão do espaço-tempo que as sociedades contemporâneas vivem. Neste contexto há países que fazem circular o seu capital humano de forma sistemática sem que percam valor. É o caso da mobilidade dos cientistas de muitos países centrais que circulam por países periféricos e semiperiféricos. Mas essa mobilidade é transitória ou pendular. Se observarmos o processo emigratório do lado da globalização verificamos que existem grandes assimetrias nas trocas de recursos humanos. Assim como acontece na globalização económica e financeira, também na globalização do capital humano existem ganhadores e perdedores. E o retrato que nos é dado de Portugal neste trabalho de 2015 é a de um país que serve de reserva para as necessidades de trabalhadores muito qualificados que outros países europeus centrais não têm e não formam em quantidade suficiente.
Assim, a emigração qualificada parece estar neste entre-dois: por um lado, a globalização perdedora e, por outro, os percursos biográficos ganhadores. A globalização perdedora em que o país viu partir algumas dezenas de milhar de qualificados com um impacto notório em muitos indicadores da actual crise pandémica em Portugal: falta de enfermeiros e médicos no SNS; dificuldade em o sistema científico responder a exigências imprevisíveis (embora se deva reconhecer a capacidade de alguns centros de excelência darem respostas excepcionais); incapacidade de o sistema produtivo responder às necessidades de equipamento básico de protecção e tratamento. Tudo indicadores de um mercado de trabalho menos qualificado, ancorado em salários baixos, numa economia carente de conhecimento e inovação e num estado social depauperado pelos anos da crise.
O momento simbólico em que Boris Johnson agradece a sua recuperação a um enfermeiro português emigrado em Londres, apenas nos fez regressar a um passado não muito distante em que o fluxo de emigração qualificada se tornou um sinal desse inevitável fracasso das elites políticas e económicas do país.
Se nada for feito, a mobilidade e a emigração de recursos humanos qualificados tenderá a alargar-se e a tornar-se num fenómeno estrutural por força dos fluxos económicos e financeiros decorrentes das trocas desiguais entre países centrais, semiperiféricos e periféricos. Os fluxos emigratórios qualificados parecem seguir a mesma geografia da restante emigração, com um saldo negativo para Portugal. No entanto, os investimentos em educação e as políticas educativas continuam a ser nacionais. Assim sendo, esses custos tendem a ser transferidos para os países centrais a coberto da liberdade de circulação do capital humano, produzindo-se uma circulação assimétrica de cérebros.
A questão que se colocará mais tarde ou mais cedo de modo a assegurar a educação como um bem comum global a que todos devem ter acesso, independentemente do país ou da região do mundo em que exerçam a sua actividade profissional, é a de saber quais os mecanismos globais e continentais de financiamento que devem complementar e compensar as despesas públicas nacionais na formação. Este é um problema que há muito é enunciado por economistas que têm posto as opções políticas adiante dos modelos econométricos que escondem, como dizia Rubinstein em 2012, que “Os modelos matemáticos são meras fábulas vestidas de linguagem formal (que criam a ilusão de serem científicos); a economia é uma disciplina académica que tende ao conservadorismo e ajuda os privilegiados da sociedade a manter o seu domínio” (3).
____________
(1) Gomes, Rui (coord.) (2015). Fuga de cérebros. Lisboa: Bertrand.
(2) Cerdeira, Luísa et al. (2015). Exportar mão-de-obra qualificada a custo zero: quanto perde Portugal com a fuga de cérebros? Educação em Questão, 53(39), 45-75.
(3) Rubinstein, Ariel (2012) Economic fables. Cambridge: Open Book.

« - »