Artigo

(Des) caminhos curriculares | Tortuous curricular paths

Maria Macara e Rosa Nogueira. Artigo publicado em janeiro de 2014

Vivemos tempos difíceis.

A (re)construção dos caminhos da educação integrando a educação para todos com direito ao acesso e ao sucesso, só na sua 1ª metade vai pronta. Diríamos mesmo que a 2ª parte do caminho – o direito ao sucesso - está a sofrer um profundo recuo a antanho, aos tempos em que a escola cumpria a missão de ensinar a todos como a um só, seleccionando e classificando, arrumando as criaturas nas “castas” de origem como se da ordem natural se tratasse. É disso que trata a retórica da meritocracia e do quadro de honra. - Não tens sucesso porque não mereces a escola que tens! Como as camisolas de marca na produção em série: umas vão para a loja da Avenida, outras para o refugo da feira. Sem que a fábrica ou a escola se questionem a si próprias.

Contudo, na tarefa árdua de tutelar a Educação, sucedem-se os ministeriáveis. Numa carreira docente completa, de 75 para cá, passaram por nós cerca de duas dezenas. Melhores e piores, passaram e os professores, melhores e piores, ficaram. Buscando melhorar com e apesar deles. Que pontes se criaram? Quando e como o tempo e o objetivo das políticas teve em conta os tempos e objectivos da educação? Das políticas às práticas, um processo partilhado raras mas preciosas vezes.
Não é fácil a vida docente, com este quadro de personalidades que marcam o seu terreno conforme a orientação ideológica, não cuidando de um pacto educativo conforme à Lei de Bases – exceção feita pela proposta apresentada em 96, pelo ME, e chumbada na assembleia da República. Um pacto que dê estabilidade à prática educativa e à formação contínua indissociada, que evite deitar fora programas em início de generalização e todo o seu conteúdo formativo só porque sim. Só porque se quer ficar na história (pequena história) como “reformadores”, no jogo de poderes. Tratando a educação como um custo, desinvestindo e cortando a qualquer preço. Mesmo que para isso se inventem tesouras chamadas “exame”, com papel de funil cujo diâmetro é variável segundo a conveniência do ministério das Finanças. Porque, agora, com o Ministro Crato, é disto que se trata, é isto que se revive.

Assistimos, nas últimas quatro décadas, a três reformas curriculares e ainda duas reorganizações dos currículos do ensino básico e secundário, a muitas mudanças com caracter mais ou menos disruptivo, que se sucedem no tempo curto, raramente acompanhadas da partilha da avaliação dos efeitos que lhes dão razão de ser, com os atores no terreno. Carecem pois da valorização do desenvolvimento dos intervenientes na sua discussão e aprovação, a despeito duma retórica de autonomia das escolas, vazia de concretização.

Capciosamente legitimadas pelo ambiente de «crise» vivido em Portugal, como noutros países europeus, no presente ministério Crato, damos conta de mudanças nas disciplinas, nos conteúdos programáticos e nos recursos curriculares, acompanhadas de alterações estruturais, consignadas no Decreto-Lei n.º 139/2012 de 5 de julho, e num conjunto de despachos regulamentares, em cuja declaração de intenções as medidas adotadas passariam, essencialmente, por

… um aumento da autonomia das escolas na gestão do currículo, por uma maior liberdade de escolha das ofertas formativas, pela atualização da estrutura do currículo, nomeadamente através da redução da dispersão curricular, e por um acompanhamento mais eficaz dos alunos, através de uma melhoria da avaliação e da deteção atempada de dificuldades. Importa ainda valorizar tanto a autonomia pedagógica e organizativa das escolas como o profissionalismo e a liberdade dos professores na implementação de metodologias baseadas nas suas experiências, práticas individuais e colaborativas…

Contudo, as medidas adotadas, que se destacam, vão ao arrepio da retórica discursiva enunciada. Assim, as mudanças curriculares consignam:

• Uma “redução da dispersão curricular e do reforço da carga horária nas disciplinas fundamentais” (artigo 3º, alínea d) – no sentido da sobrevalorização dum núcleo duro de disciplinas (o reforço da aprendizagem do Português e da Matemática, aumentando o número total de horas em cada uma dessas disciplinas ao longo dos três ciclos do Ensino Básico. Também a atribuição de cargas horárias semanais definidas como os tempos mínimos para a lecionação do programa do 1° ciclo, nas áreas- agora denominadas disciplinas - de Português, Matemática e Estudo do Meio, configura também uma nova realidade curricular).


A não dispersão invocada traduz-se no desequilíbrio do currículo que, na perspetiva de formação integral básica e obrigatória, desvaloriza as áreas das expressões e da formação cívica (casos de EVT, Formação Cívica e Educação Física) e supressão da Área de Projeto, nos 2.º e 3.º ciclos, bem como ajustamento da carga horária do Estudo Acompanhado e alteração do seu sentido pedagógico. Este, “orientado para a criação de métodos de estudo e trabalho que promovam a autonomia da aprendizagem e a melhoria dos resultados escolares”-, é limitado aos “alunos que tenham maiores dificuldades” e, portanto, transformado em fator de remediação para alguns e não de antecipação e formação plena para todos.

A educação para a cidadania transforma-se em “área transversal (…) passível de ser abordada em todas as áreas curriculares, não sendo imposta como uma disciplina isolada obrigatória, mas possibilitando às escolas a decisão da sua oferta nos termos da sua materialização disciplinar autónoma” em 1h/semana (!). Decisão esta, na prática, condicionada pela drástica redução do corpo docente e acautelada apenas retoricamente e amiúde no diploma legal através das expressões “de acordo com os recursos disponíveis” e “optimizando os seus recursos materiais e humanos”! A retórica pedagógica do decreto é assim reorientada pela vida real, isto é, pelas contingências das medidas estruturais restritivas que a acompanha, reforçada mais adiante, nos princípios orientadores, que confirmam a sua não autonomização como oferta obrigatória (artigo 3º, alínea m).

As componentes curriculares complementares ”que contribuam para a promoção integral dos alunos em áreas de cidadania, artísticas, culturais, científicas ou outras” (artigo 12º pontos 1 e 2) previstas para os 2.º e 3.º ciclos são eventuais e a sua oferta “deve ser efetuada através da utilização de um conjunto de horas de crédito, definidas em despacho normativo do membro do Governo responsável pela área da educação” (idem). Ou seja, contingente e centralizado, contrariando mais uma vez a propalada autonomia das escolas e dando a estas componentes um carácter subsidiário e aleatório.

Prevendo “fomentar, no 1.º ciclo, a colaboração nas áreas das expressões de professores de outros ciclos do mesmo agrupamento de escolas que pertençam aos grupos de recrutamento destas áreas” (….), verifica-se pela suspensão de lugares destes professores nos 2º e 3º ciclos do ensino Básico, a colocação de alguns destes por concurso no 1º ciclo como professor titular de turma ao invés de coadjuvante na área das expressões, com todos os problemas resultantes da sua “reciclagem” não prevista e desapoiada.

Como se não bastasse,

• É revogado o currículo explícito por competências que se articulava com os novos programas de matemática e português no E. Básico, substituído por uma semântica que privilegia os conceitos de “conhecimentos e capacidades a adquirir” (artigo 2º, ponto 3) ou o “desenvolvimento de capacidades essenciais para cada ciclo e nível de ensino” (artigo 3º, alínea b);

• O Programa de Matemática do Ensino Básico é substituído por um outro, sem respeito pelo tempo regulamentar de experimentação e avaliação, ao arrepio do investimento feito na formação de professores para a implementação do anterior.

• A descontinuação da formação contínua de professores no âmbito do Plano da Matemática e do Português interrompe um processo de grande investimento de recursos humanos e que fez mais pela inovação das práticas pedagógicas que os modelos recentes de avaliação de professores.

Como alterações estruturais na organização curricular apontam-se as seguintes:
• A criação temporária de grupos de homogeneidade relativa (o que significa?) em disciplinas estruturantes, no ensino básico, atendendo aos recursos da escola e à pertinência das situações. Significa isto a fusão de duas ou mais disciplinas numa só? Os recursos da escola voltam assim a marcar a qualidade do trabalho escolar.

• O Ensino vocacional (artigo 6º, ponto 1, alínea f) precoce porque previsto logo no 4º ano de escolaridade desde que neste ciclo se verifiquem duas retenções, é entendido como medida de promoção do sucesso escolar (artigo 21º) e apresenta o objectivo de “Reorientar o percurso de alunos que revelem insucesso escolar repetido ou problemas de integração na comunidade educativa, após uma avaliação da situação e posterior encaminhamento para um percurso que lhe confira certificado de qualificação profissional (idem, alínea f). Esta “reorientação do percurso formativo dos alunos é regulada pelas escolas de acordo com orientações gerais do ministro responsável pela área da educação (artigo 7º, ponto 2).

Sob a capa da “reorientação” de alunos com insucesso escolar e/ou problemas de integração na comunidade educativa, estamos perante uma situação da maior gravidade: a exclusão para vias profissionalizantes, sob regulação das escolas e de acordo com as orientações ministeriais dos alunos que, por razões várias, e, em primeiro lugar, por pertencerem a meios de cultura não letrada - os filhos do analfabetismo – não se integram na escola rígida e uniforme, uma escola tradicional e igual para todos em que é suposto que todos aprendam a mesma coisa, ao mesmo tempo e da mesma maneira. Trata-se de um retrocesso civilizacional que não pode passar em silêncio.

• A diminuição drástica do número de professores prejudica fortemente o apoio aos alunos e o desenvolvimento de atividades diferenciadas. O mesmo acontece com o aumento do número de alunos por turma, criando uma pressão para a conformidade e para o ensino expositivo tradicional. Há muitos professores que, pela diminuição das horas das suas disciplinas, vão de escola em escola e se dispersam entre mais de 13 turmas.

• São introduzidos os Exames no sistema de avaliação e selecção. A partir de 2012/2013, os alunos do 4.º ano realizam exames nacionais que contam 25% para a sua avaliação final; no 6.º ano são introduzidas provas finais e, no 9º ano, exames nacionais, nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.
Afinal, ignorando os avanços das ciências sociais e humanas e do crescente papel da avaliação contínua e aferida, postulando uma “articulação do currículo e da avaliação, assegurando que esta constitua um elemento de referência que reforce a sistematização do que se ensina e do que se aprende” (artigo 3º alínea K), e a “promoção do rigor da avaliação, valorizando os resultados escolares e reforçando a avaliação sumativa externa no ensino básico (artigo 3º, alínea l), o Ministério opta por uma avaliação sumativa revigorada – “interna, da responsabilidade dos professores e dos órgãos de gestão e administração dos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas; (…) externa, da responsabilidade dos serviços ou entidades do Ministério da Educação e Ciência designados para o efeito.” (Artigo 24ª, ponto 4, alíneas a e b), consubstanciada em provas intermédias, provas finais e exames nacionais – e precoce (desde o 1º ano), classificatória e selectiva. A pretexto do rigor e da valorização dos resultados escolares, multiplicam-se os níveis avaliativos – internos, externos, dos alunos, dos professores e das escolas, - tudo isto num discurso confuso e prolixo, não fundamentado.
Esta avaliação tem como referente novas metas designadas de curriculares, homologadas pelo Despacho n.º 10874/2012, de 10 de agosto, Série II (centradas nos conteúdos e nos resultados), não respeitando os ritmos de aprendizagem que tenham como referente metas de aprendizagem (centradas nos processos de aprendizagem e nos desenvolvimento de competências).
Segundo Goodson (2007), um dos princípios importantes da reforma é a padronização obtida pela relação entre currículo e avaliação de desempenho, constituindo-se um modelo empresarial de gestão da educação. É este o caso.

As medidas legisladas, entendidas pelo CNE como consistindo num “primado de alterações pontuais sobre as alterações sistematizadas” e determinadas por uma “racionalidade orçamentária” – na verdade, as medidas legisladas são reorientadoras da «agulha» e dão corpo a politicas ideologicamente conectadas com as preocupações neoliberais e da meritocracia e que se afastam da ideia de uma Escola para Todos, apostada numa formação integral básica, defendida pela Constituição e pela lei de Bases do Sistema Educativo como expressão colectiva, ao afirmarem o direito de todos não só ao acesso mas ao êxito escolar. Em viés, a educação orienta-se para serviço do mercado de trabalho e do empreendedorismo individual, sustentando de novo a reprodução social.
As mudanças drásticas trazidas à Educação não consistem efectivamente numa revisão mas numa reforma maquilhada, numa mudança de curso em função de um entendimento diverso, selectivo e elitista de “para que serve” a educação no presente e no futuro da sociedade portuguesa. O próprio sentido crescente da avaliação sumativa, classificatória e selecionadora, fazendo tábua rasa dos dados da investigação e dos bons exemplos existentes em países cujos bons resultados nos são apresentados como estigmatizantes da nossa realidade, mas nunca como modelo sistémico a implementar. A mudança é instilada ao nível das práticas pelo cansaço, pela funcionarização e precarização da profissão docente.

Para que uma qualquer reforma necessária se implemente e consolide impõe-se a compreensão, por parte dos intervenientes, da necessidade da mudança e inovação, dando lugar ao empenhamento positivo na consecução dos objetivos propostos. Mas nem disso cuidam os reformadores. Ao contrário, no momento atual, em Portugal, as mudanças são impostas a despeito dos professores e, muito frequentemente, a personalidade favorável à inovação fundamentada tem sido vista como o obstáculo à reforma real, ao invés de ser seu material mais importante.

Investir em educação hoje, seculo XXI, deveria ser – e não é - a promoção e a colaboração de todos os atores educativos e institucionais para promoção do seu desenvolvimento, visando um ensino diferenciado capaz de desenvolver nos alunos o desejo por aprendizagens significativas e duradoiras por meio do trabalho autónomo, cooperativo e mediado pela tutoria docente em torno de projectos colectivos e não a reedição de ensinar a muitos como se fora um só.

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