Educação, um campo de luta ideológica e política | Education, a field of ideological and political struggle
Ana Benavente. Artigo publicado em setembro de 2011
1. A Educação. Um campo de luta política e ideológica.
Desde a sua criação que a “Escola” enquanto instituição social assume diferentes significados para as ideologias que se cruzam nas sociedades.
São numerosos os textos e os estudos, sobretudo no âmbito da sociologia – mas também da história, da política, da economia e da pedagogia – que analisam a evolução dos “modelos” de escola que se foram desenvolvendo em diferentes fases históricas, assim como as marcas deixadas por partidos conservadores ou de esquerda e ainda o papel que desempenham e os resultados que produzem.
Coexistem mesmo, em cada sociedade, “escolas alternativas”, embora sempre com carácter de excepção. Mas não esqueçamos que, no seu “núcleo duro”, o modelo de escola actualmente vigente é muito próximo do que foi criado nos tempos da revolução industrial, alunos alinhados, conhecimentos transmitidos oralmente pelo professor, uniformidade de conteúdos, de métodos e de avaliação, castração da criatividade, ausência de formação de espírito crítico e de responsabilidade e autonomia na aprendizagem.
Em Portugal, vivemos décadas marcadas por uma escola de curta duração, instrumento ideológico da ditadura, fabricando eleitos e excluídos, com formação de elites muito restritas, modelo que se começou a transformar durante a “primavera marcelista” (final dos anos 60 e início dos anos 70).
Após o 25 de Abril de 74, a Escola libertou-se das suas amarras e foram inúmeras as iniciativas, tanto a nível central como a nível local, tanto na educação dos mais novos como na educação de adultos e no ensino superior, que marcaram um novo período (a educação de adultos e o ensino superior serão tema de próximos artigos).
Desde então, foram alternando, na ausência de um qualquer entendimento social sobre orientações estruturantes para a escola em democracia, segundo os partidos eleitos para o governo, políticas mais conservadoras e políticas mais centradas na democratização, nas aprendizagens, na igualdade e na cidadania.
É evidente que a “escola capitalista”, tão bem desconstruída nos anos 60 e seguintes por P. Bourdieu e Cl. Passeron1 e Ch. Baudelot e R. Establet2, entre muitos outros, análises reelaboradas na actualidade, com novos contornos3 não pode – e os estudos nacionais e internacionais sobre o insucesso e o abandono escolares provaram-no até à exaustão – garantir a Educação para Todos com qualidade.
Em democracia, o desafio é o de construir uma escola capaz de assegurar as aprendizagens de crianças e de jovens de culturas letradas e não letradas, em muitos casos “filhos do analfabetismo”, na expressão consagrada de Emília Ferreiro4. Com as mudanças que têm vindo a ocorrer, nos modos de vida, na urbanização crescente, na “desparentalização” – de que fala Cynthia Fleury5, no mundo económico e no mundo do trabalho, no desenvolvimento das novas tecnologias e na sua omnipresença individual e colectiva no quotidiano do hemisfério norte no século XXI, as sociedades alargaram os seus pedidos à instituição escolar. Já não se trata de “instruir”, mas sim de “educar”, construindo o sentido pessoal e social dos saberes, assegurando uma vida cidadã nas escolas, desenvolvendo a formação crítica – aprender, saber, saber pensar e saber agir.
No mundo actual, há novas exigências a que a instituição escolar é socialmente chamada a responder. Para o fazer, tem que se refundar. À exclusão opõe-se a integração, à obediência passiva o desenvolvimento do espírito crítico, da autonomia e da responsabilidade, aos saberes nucleares acrescem novas áreas, metodologias e instrumentos, nomeadamente as novas tecnologias (o lápis já não chega, a aula expositiva tão pouco).
Depois de anos de energias centradas na avaliação de professores, com desprezo por qualquer outro domínio da vida escolar, período de pré-destruição da escola democrática, a actualidade traz-nos agora, com um discurso confuso mas com uma ideologia clara, um governo que quer a escola-empresa, a concorrência entre escolas, que quer a “liberdade de escolha”, que quer o back to basics (português e matemática), que quer exames e mais exames, que quer fileiras paralelas para os vários públicos escolares. Tais propostas, quasi ausentes de um pobre programa de governo PSD/CDS, mas afirmadas em entrevistas, num discurso oficial que se quer sorridente e cordato, baseiam-se nas ideologias mais conservadoras que são, aliàs, questionadas hoje pelos próprios autores que as elaboraram (ver ficha de leitura de António Teodoro sobre o livro de Diana Raditch (2010)6). Tais propostas desprezam a qualidade das aprendizagens para todos, a democracia na organização e na gestão das escolas e a cidadania no centro da formação dos mais novos.
A actualidade traz-nos um ministro que diz querer, falando muito a sério, para Portugal, o modelo Britânico ou Norte-Americano. Será a escola dos “soldadinhos de chumbo”? Aquelas escolas que, nas periferias urbanas, num e noutro desses países, recicla militares (começou com os que voltaram da Guerra do Golfo nos Estados Unidos) e os torna directores de escolas, mandantes únicos, conduzindo-as com mão de ferro, com disciplina militar como verdadeiras casernas? Obediência, saberes de base, exames e seleção. No seu discurso, as palavras mais frequentes são “mérito”, concorrência, eficiência, recursos humanos e dinheiro, claro, os custos.
2. A informação não é neutra
E tão pouco o é a investigação.
As perguntas, os temas, as questões que, em cada período histórico, têm estatuto científico alteram-se em função de contextos ideológicos, sociais, académico e financeiros. E em função dos interesses de quem pergunta.
Considero que sabemos menos do que pensamos sobre Educação e Formação em Portugal.
A primeira razão desse desconhecimento prende-se com o que se quer saber. Que se pergunta aos números? Como são recolhidos e tratados? E que números procuramos? Porquê e para quê? A produção estatística tem sempre um quadro de referência ideológico sobre a instituição escolar. Porque é que eu quero saber se há diferenças de vencimento entre quem tem o 9º ano ou uma licenciatura e não me pergunto sobre a sua participação democrática? Não há estatísticas inocentes.
A segunda razão pela qual sabemos pouco sobre Educação e Formação é porque as estatísticas são parcelares e são muitas vezes, descontínuas. Acresce que a centração em dados quantitativos, ignorando as dinâmicas, diversidades e contradições da realidade, nos encerra num conhecimento empobrecido.
A terceira razão tem a ver com a produção dos indicadores utilizados em comparações nacionais e internacionais, que são considerados como “únicos” e “inquestionáveis”, o que não é verdade pois, mais uma vez, não explicitam o quadro ideológico – a concepção de escola e do seu papel na sociedade – que os informa.
A quarta razão tem a ver com a utilização que é feita de elementos desiguais e dispersos de informação pelos orgãos de soberania e, em geral, no campo público e mediático: servem de arma de arremesso nas disputas político-partidárias. Se o país “sobe” num qualquer ranking, é bom, se “desce”, é mau, tal como nas ligas de futebol.
Finalmente, sabemos pouco porque somos invadidos por elementos dispersos e caóticos de informação, reportagens e relatos, depoimentos e opiniões que servem de ecrã ao conhecimento rigoroso.
Claro que há um elevado número de publicações académicas muito pertinentes, em diversos campos disciplinares, há fontes estatísticas, nacionais e internacionais que podem e devem ser articuladas. Há ainda trabalhos importantes centrados em “boas práticas” e em abordagens temáticas da realidade. Estratégias combinadas de análises quantitativas e de análise sistemática de situações reais, podem dar-nos informações seguras sobre os avanços, os problemas e os desafios da educação e da formação em Portugal.
Há também, como já referi, quadros teóricos construídos e fundamentados na história e nos saberes das ciências sociais e humanas. Mas se, para a defesa de inovações e de mudanças democráticas, o caminho é cheio de escolhos e os espaços mediáticos são raros, já para o reforço das ideologias conservadoras e, hoje, designadas como neo-liberais, a “naturalização” de parcelas de informação é um modo corrente de agir. Pseudo-científico mas corrente.
Tem faltado entre nós um trabalho sistemático de análise das políticas e, sobretudo, das suas interpretações, concretizações e efeitos na educação e formação.
É assim que os debates parlamentares, os programas partidários, os estudos académicos e a vida e dinâmica das escolas, em todos os graus de ensino ou na formação de adultos, andam divorciados, cada um falando para o seu público próprio. Os cruzamentos entre estes espaços são raros.
Acresce que, por razões socio-políticas e institucionais, a Educação constitui um campo de estudo e de intervenção desvalorizado nas academias e nas sociedades. Os “modismos” e a força da gestão neo-liberal na investigação têm tido vários tipos de impacto negativo: o desinteresse pela investigação articulada com as escolas e com as realidades educativas, o afastamento entre as universidades e as opiniões públicas nacionais (dada, nomeadamente, a “febre” da internacionalização que impõe a língua inglesa como veículo previlegiado de produção e de comunicação), a “divisão” e dispersão de campos temáticos na educação, contrariando o sentido agregador da própria constituição das ciências da educação.
A democracia, o desenvolvimento sustentado, a dignidade das pessoas, a economia “com futuro” formulam exigências que as actuais políticas educativas contrariam em absoluto.
Por isso, torna-se urgente produzir e divulgar conhecimento rigoroso, quantitativo e qualitativo, sobre a realidade da educação-formação, no quadro da construção de uma democracia participada e cidadã. É este um dos desafios do Observatório cuja actividade pública agora se inicia. Ana Benavente.
1 P. Bourdieu, J. Cl. Passeron (1964), Les Héritiers, Ed. de Minuit, Paris
2 Ch Baudelot, R. Establet (1971), L’École capitaliste en France, Maspero, Paris
3 P.Clément, G.Dreux, Ch.Laval, F.Vergne (2011), La nouvelle école capitaliste en France, La Découverte, Paris
4 E. Ferreiro (org.) (1992), Os filhos do analfabetismo, Artes Médicas, Porto Alegre
5 C. Fleury (2010), La fin du courage, Fayard, Paris
6 D. Ravitch (2010), The Death and Life of the Great American School System. How Testing ans Choice are undermining Education. New York Books, New York