Artigo

Ensino superior – reformas em contraciclo | Higher education - counter cycle reforms

Paulo Peixoto. Artigo publicado em outubro de 2011

Direta e indiretamente, o sistema de Ensino Superior português foi sujeito, nos últimos 5 anos, à mais profunda reforma de que têm memória todos aqueles que nele se encaixam, enquanto professores, alunos ou funcionários. Diretamente, para referir apenas as mais significativas, por via de alterações legislativas consagradas no domínio dos graus e títulos atribuídosi, dos novos estatutos de carreiraii  e da organização do sistema de ensino superioriii, a reforma foi extensa. Indiretamente, quer pela transposição de orientações europeias para a legislação nacionaliv, quer pela promulgação de legislação que enquadra as profissões exercidas nas Instituições de Ensino Superior (IES)v, a profundidade das reformas não foi menor.

Se perguntarmos o que ficou de fora da reforma promovida por este afã legislativo, sobressai uma pergunta retórica, já que nada parece ter ficado de fora. Todavia, a questão mais pertinente é, sem dúvida, indagar o sentido das reformas e questionar a sua aparente bondade em ampliar a importância do ensino superior enquanto intrumento de reforço das qualificações dos portugueses e da competitividade nacional.

Começando por esta última questão, é importante registar, desde logo, que as reformas operadas ocorrem em contraciclo, uma vez que é sabido que as melhores reformas são as que se realizam em períodos estáveis e de crescimento, não estando determinadas primordialmente por constrangimentos de ordem financeira, mas sim por objetivos maiores a alcançar nos médio e longo prazos. Não é por acaso que quando encaramos esta panóplia de leis e de decretos - e quando, a partir dela, indagamos o sentido das reformas – nos fica a sensação que ela é dominada pela ideia que, combinada, esta trama legislativa, em si, soa mais a revolução e menos a reforma. As revoluções, essas sim, ocorrem quando as coisas não funcionam ou quando o grau de insatisfação é muito elevado.

Fica claro que o sentido das reformas é o de produzir um sistema de ensino superior mais barato. Mas seria insensato declarar esse objetivo como vazio de qualquer estratégia e não reconhecer que por trás desse desiderato há uma estratégia devidamente orquestrada e sustentada em mecanismos legais e financeiros e, obviamente, em instrumentos de decisão política assumida. Essa estratégia assenta na consagração de um sistema dual de ensino superior. Por um lado, separando as IES entre as que estão vocacionadas para programas pós-graduados e para a investigação científica e aquelas que devem orientar a sua oferta para o primeiro ciclo de formação. Por outro lado, e em consonância com o objetivo anterior, distinguindo áreas de formação, entre aquelas que podem fornecer, sobretudo, competências genéricas e as que têm obrigatoriamente de fornecer competências específicas.

De um ponto de vista ideológico trata-se de uma estratégia que não levanta grandes problemas, a não ser àqueles que nas IES se vão vendo arredados das oportunidades de desenvolver investigação, ficando sujeitos a cargas horárias cada vez mais elevadas e a tarefas cada vez mais heterogéneas e diferenciadas. Difunde-se a ideia que é fácil aceder ao ensino superior e aí obter um grau académico. Isso satisfaz as famílias em termos do prestígio que a frequência do ensino superior ainda confere, ao mesmo tempo que satisfaz as IES que, encontrando-se em dificuldades, se resignam ao mínimo olímpico de garantir a entrada de alunos, independentemente da qualidade com que chegam e das condições objetivas para evitar o drop out. A inclusão de novos públicos, dos cursos de especialização tecnológica aos maiores de 23 anos, funciona como elixir de um sofrimento que a reforma legislativa e os mecanismos por ela criados foi acentuando. Ainda nesse plano ideológico, o sistema dual de ensino superior, com a sua dimensão light, garante o não despiciendo objetivo de ver o país melhorar a sua performance nos diferentes rankings, da OCDE ao Eurydce. De um ponto de vista prático, se acreditarmos que um modelo que nos fornece uma elite de profissionais qualificados em “determinadas” áreas do conhecimento e uma massa significatica de diplomados é o modelo adequado para preparar Portugal para o futuro, então, o sistema dual acaba também por se justificar.

Tanto mais que esse modelo se vê legitimado por um certo compromisso entre as virtudes do Estado social e os preceitos das lógicas neoliberais que estão na moda, promovidas pelas agendas e pelas agências hegemónicas no setor da educação. No fundo, facilita-se o acesso ao ensino superior, embaratecendo o seu custo pela diminuição de anos de frequência, e onera-se, para quem pode pagar, e para quem acredita que o ensino superior pode trazer algo mais que o prestígio do “canudo”, a participação mais qualificada e que mais probabilidades de sucesso garante no mecado do emprego. A questão será sempre a de saber se devemos aceitar os objetivos desta estratégia como os desígnios que melhor servem o Portugal que temos e também aquele que queremos.

Retomando a pergunta retórica, poderíamos dizer que, afinal, ficou por rever o Estatuto da carreira de investigação científica (ECIC) e que ficou por rever a reestruturação da rede das IES. Em relação a esta última questão, só por ingenuidade se pode ignorar que, na arquitetura legal da reforma, foram criadas todas as condições para tornar óbvias, em situação gradual de uma lenta agonia, as condições que justificarão encerramentos e fusões (de instituições e de cursos). Aquilo que feito intempestivamente seria de difícil gestão política, acaba por ser transferido como ónus para as IES e os seus órgãos de governação, ou, na pior das hipóteses, para “um ministro competente capaz de responder ao óbvio”.

Significa isto que, em rigor, a maior parte dos efeitos das reformas ainda não são visíveis, nem podem ser devidamente avaliados. Para não focar todas as dimensões, é ainda muito cedo para, por exemplo, se poder dar conta do que se ganhou com o modelo de governação baseado nos Conselhos Gerais, assim como para se avaliar as garantias da sua sustentabilidade futura. Pior que a concretização do cenário de vermos que muitas das mudanças transportadas pela reforma, afinal, vieram contribuir, com alarido, para que tudo permanecesse, só mesmo o cenário de vermos concretizadas as mudanças que, à partida, já evidenciavam aquilo que consigo traziam de mau.

Pode parecer estranho que, no contexto de uma reforma tão profunda, onde menos alterações legislativas ocorreram tenha sido no setor da investigação científica, apesar das expetativas generalizadas da aprovação de um novo ECIC e de um novo estatuto de bolseiro de investigação. Tanto mais que o setor da Ciência e da Investigação científica permaneceu como a menina-dos-olhos bonitos da governação, tendo beneficiado de orçamentos generosos. Este facto, por si só, serviria para justificar o argumento de uma reforma promovida em contraciclo. Ou seja, onde havia dinheiro não foi preciso reformar, uma vez que a estratégia e o sentido da reforma se dirigiu precisamente aos domínios onde o dinheiro mais faltava e onde se tornava necessário aliviar os danos. É certo que, também neste domínio, em que se situa grande parte das dinâmicas de algumas IES, sobretudo daquelas a quem as reformas menos parecem, para já, ter afetado, se começa a assistir, com o agravamento da crise, aos efeitos de uma política que parece ter sido tão melhor sucedida quanto foi capaz de criar agentes de legitimação que só agora começam a vislumbrar muitos dos efeitos dessa reforma. Paulo Peixoto


i Em concreto no quadro do processo de Bolonha (DL n.º 74/2006, posteriormente alterado; Portaria nº 30/2008, definindo a atribuição de suplemento ao diploma; DL n.º 341/2007, relativo ao reconhecimento de graus), mas também no que respeita às provas de agregação (DL n.º 239/2007), assim como ao título de especialista (DL nº 206/2009).

ii Estatuto da carreira docente universitária – ECDU (DL nº 205/2009, revisto pela Lei n.º 8/2010); Estatuto da carreira do pessoal docente do ensino superior politécnico – ECPDESP (DL nº 207/2009, alterado pela Lei n.º 7/2010).

iii O Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (Lei nº 62/2007); a Avaliação do Ensino Superior (Lei 38/2007); a criação de uma Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (DL n.º 369/2007); o Financiamento do Ensino Superior (Lei n.º 62/2007); a Responsabilidade dos titulares de cargos de Gestão (Leis 30/2008, 41/2010 e 4/2011), entre outras, reúnem as principais reformas no domínio da organização do sistema de ensino superior.

iv Designadamente no âmbito da criação do espaço europeu de ensino superior (DL 42/2005, alterado pelo DL 107/2008; DL 230/2009 e Despachos nºs 7287-A/2006, 7287-B/2006, e 7287-C /2006).

v No domínio da Função Pública merecem destaque os Regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas (Lei nº 12-A/2008, sucessivamente alterada); o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (Lei nº 59/2008, alterado em 2010); e o Sistema integrado de gestão e avaliação do desempenho na Administração Pública – SIADAP (Lei nº 66-B/2007, posteriormente alterado). No campo da legislação geral do trabalho e da segurança social, salienta-se a Revisão do Código do Trabalho (Lei nº 7/2009, alterada pela Lei nº 105/2009).

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