Artigo

O Orçamento de Estado para 2014 e as novas ameaças à educação pública |The State Budget for 2014 and the new threats to public education

Jorge Martins. Artigo publicado em novembro 2013

Na sequência da crise financeira e imobiliária1 ocorrida nos Estados Unidos em 2008, que se propagou à Europa através da resposta anti-cíclica das dívidas soberanas e da crise do euro, Portugal tem sofrido um programa de empobrecimento intencional e sistemático, imposto como condição pelos credores internacionais ao empréstimo financeiro negociado em 2011.
Gerido por um governo ideologicamente alinhado com o neoliberalismo radical hegemónico nas instituições financeiras internacionais, aquele programa tem vindo a impôr não só desproporcionadas medidas de austeridade, destruidoras de sectores significativos da economia e do emprego, mas também o recuo do Estado democrático e da relação deste com a sociedade.
Quase dois anos e meio após a aplicação daquele programa, verifica-se que nem o deficit orçamental nem a dívida nacional melhoraram. No entanto, a sociedade fragilizou-se, a economia regrediu, as classes média e baixa empobreceram e o mercado de trabalho perdeu milhares de activos, especialmente entre os mais novos e qualificados, assim forçados a emigrar. O desemprego atingiu o valor mais alto das últimas décadas, ultrapassando os 17,5%.
Uma das estratégias emergentes deste processo austeritário de “ajustamento financeiro, económico e social” em curso é a imposição de uma nova configuração do Estado, quer na redução do perímetro das suas finalidades sociais, quer na diminuição da capacidade de resposta qualificada dos seus diversos serviços. Sob a ditadura inquestionável da redução de custos da máquina administrativa, as finalidades sociais da intervenção estatal são reduzidas, desarticuladas e desqualificadas à custa de despedimentos massivos, cortes brutais nos salários e nas reformas, redução drástica das despesas de funcionamento de escolas e hospitais, crescente privatização de serviços públicos e reforço da recentralização das políticas públicas, num grau nunca antes visto.
A educação não escapa a este movimento geral de “expiação de culpas”!
De facto, na educação, o governo tem vindo a impor o recuo do serviço público através, sobretudo, do continuado desinvestimento orçamental, justificado com a limitação do deficit imposto pelo “programa de ajustamento orçamental”. É assim que é apresentada a mais gravosa ofensiva sobre a educação pública dos últimos 40 anos e que parece não ter fim!
Na esteira dos cortes verificados nos últimos três anos2, também o Orçamento de Estado para 20143 representa mais um passo na criminosa desvalorização estratégica do sector através de um corte de quase 8% relativamente ao ano em curso. Como se pode verificar nas citações seguintes, estarão em jogo medidas ditas de poupança transversais e sectoriais que terão um impacto fortemente penalizador do regular funcionamento de todos os estabelecimentos educativos, desde o pré-escolar até ao final do secundário:


“Orçamento
A despesa total consolidada do programa de Ensino Básico e Secundário e Administração Escolar atinge o montante de 5.775,8 milhões de euros. Em relação à estimativa de 2013, verifica-se um decréscimo de 7,6% com origem sobretudo na despesa do Subsector do Estado com cobertura em receitas gerais”.(Relatório OE 2014, pág. 190; sublinhado nosso)


“Medidas Transversais
As medidas transversais a serem aplicadas neste programa orçamental permitirão uma poupança estimada em cerca de 179,6 milhões de euros. As rescisões por mútuo acordo, as aposentações do pessoal do quadro e a diminuição da contribuição do Ministério da Educação e Ciência para a ADSE, representam cerca de 52%, 31% e 14%, respetivamente, das poupanças previstas nesta rubrica ao longo de 2014” (idem; sublinhado nosso)


“Medidas Sectoriais
No conjunto de medidas sectoriais o Ministério da Educação e Ciência espera uma poupança estimada em cerca de 315,4 milhões de euros. Nesta área, e na sequência dos ganhos de eficiência que têm vindo a ser conseguidos ano após ano, esperam-se melhorias significativas a nível da gestão dos recursos educativos, nomeadamente, através da generalização da implementação da matrícula eletrónica e sua renovação nos vários ciclos de ensino, numa maior eficácia nos processos de constituição de turmas, num melhor aproveitamento dos recursos existentes para manutenção das atividades de enriquecimento curricular e na reorganização dos quadros de zona pedagógica.” (ibidem; sublinhado nosso)

O cenário que vai ser imposto aos portugueses por este orçamento não deixa margem para dúvidas: o XIX Governo em matéria de administração educativa promete desenvolver o seu programa ideológico inicial, mas privilegia “os ganhos de eficiência” que passam pela “reconfiguração em baixa” de todo o sistema educativo, forçando a:


- diminuição da oferta pública de educação em todos os níveis de educação, quer através da continuação da extinção de lugares, de escolas básicas e de jardins de infância, quer por meio de novos aumentos do número de alunos por turma;
- diminuição das ofertas educativas específicas de cada unidade orgânica, desde os projectos directamente ligados à integração de alunos com necessidade educativas especiais até aos apoios às crianças com dificuldades de aprendizagem, passando pela redução da oferta de diversificação curricular tanto no básico como no secundário;
- novo aumento do número de agrupamentos escolares e novo aumento da dimensão média (em termos de número de alunos e de número de escolas) de cada agrupamento pela integração das escolas, sobretudo secundárias, que ainda permanecem fora dos agrupamentos;
- aumento da carga horária semanal dos docentes e não docentes por via da reorganização das componentes lectiva e não lectiva, bem como das reduções relacionadas com o exercício de cargos de supervisão e gestão pedagógica intermédios dos primeiros e do aumento do horário, para 40 horas semanais, dos segundos;
- crescimento de serviços educativos escolares e paraescolares com uma gestão baseada no “outsorcing” e na privatização de algumas áreas ou da totalidade de determinados agrupamentos e estabelecimentos escolares, sem excluir experiências-piloto de parcerias público-privado para financiamento de determinadas escolas ou de determinadas ofertas educativas e curriculares;
- diminuição acelerada e brutal de postos de trabalho docente e não docente e consequentes não renovação de contratos, despedimentos, “rescisões por mútuo acordo, aposentações do pessoal do quadro e diminuição da contribuição do Ministério da Educação e Ciência para a ADSE” (OE 2014) de professores e outros funcionários da administração educativa;
- diminuição dos orçamentos de funcionamento de escolas e agrupamentos, bem como dos créditos horários, dos equivalentes financeiros a créditos horários e das transferências financeiras para projectos especiais ou despesas de investimento e ensaio de experiências de indexação desses financiamentos a índices resultantes da avaliação externa das escolas;
- aumento significativo de novos contratos de autonomia de agrupamentos com simultânea redistribuição de competências e atribuições entre a administração central, as autarquias e os agrupamentos, quer promovendo o financiamento local de parte significativa das respectivas despesas de funcionamento, quer responsabilizando entidades terceiras pelos resultados desses contratos;
- aumento dos meios e dos métodos de controlo centralizado das despesas de funcionamento das escolas e agrupamentos, e da administração educativa em geral, através do controlo electrónico remoto e “neutral” das suas principais variáveis: matrículas, renovações, inscrições e propinas de alunos, número de alunos por turma, número de turmas por ano, curso e escola, recrutamento de professores e pessoal não docente, concurso e colocação de professores (a nível de escola, de zona e nacional), planeamento da oferta da rede escolar, fornecimento de bens e serviços (leite escolar, equipamento, mobiliário e material didático, etc.)


Com o desenvolvimento destas medidas a qualidade geral do nosso ensino público básico e secundário vai baixar4, o sistema vai dualizar-se5 e vão tornar-se mais claros os objectivos implícitos no programa do governo: colocar uma parte importante do serviço educativo (algumas escolas “de excelência”, a administração exercida nas plataformas digitais, o financiamento através de parcerias entre entidades públicas e entidades privadas, a avaliação centrada em novos rankings de rácios custo/benefício e o controlo entregue a “autoridades” e “entidades” reguladoras falsamente independentes) à concorrência promovida por um mercado educativo pré-anunciado através da subsidiação estatal (vouchers e cheques-ensino) directa às famílias, instadas a exercerem o “direito de escolha” da educação que querem para os seus filhos.
Neste contexto, a recentralização da administração educativa, só possível pelo crescimento dos mega-agrupamentos e pelo progressivo desaparecimento das estruturas regionais da administração desconcentrada, justificada com a necessidade do sector contribuir para a “poupança virtuosa” na despesa primária do Estado, deve ser considerada como um passo intermédio, indispensável, na estratégia de dualização do sistema e no consequente desenvolvimento do mercado educativo.
Perante uma certa anomia geral, o programa de acelerado empobrecimento nacional tem legitimado sucessivas medidas de retrocesso na educação e na administração escolar. Esta anomia é a mais grave das ameaças que paira sobre a democracia!
Por isso, estão em grave risco as boas aquisições que a democracia trouxe ao longo das últimas décadas: tudo se pode perder agora, num curto período de anos, se não se puser termo a estas políticas. Jorge Martins


1- Ficou internacionalmente conhecida como a “Crise do Subprime”.

2 - Em 2011 e 2012 o orçamento da educação caiu de 5,7% do PIB para 3,8%.

3 - Relatório do Orçamento de Estado 2014. Políticas Sectoriais para 2014 e Recursos Financeiros”.

4 - Segundo o próprio Ministério da Educação e Ciência, entre 2005 e 2010 os resultados escolares melhoraram de modo significativo e consistente em todos os ciclos e níveis de ensino e a taxa de abandono precoce da educação e formação, na população entre os 18 e os 24 anos, reduziu-se de 38,8% para 28,7%.

5 - Para além de um assumido apoio financeiro ao ensino privado, o governo prepara experiências de gestão privada nalgumas das “melhores” escolas públicas, ao mesmo tempo que generaliza ofertas de baixo valor educativo e qualificante na maioria dos ingovernáveis mega-agrupamentos das zonas “socialmente problemáticas”.

 

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