Artigo

A Educação de Adultos na sociedade de classes | Adult education in a society with social classes

Lucília Salgado. Artigo publicado em setembro 2012

Há anos a Ana Benavente escreveu o livro "A Escola na sociedade de classes" onde desafia a sociologia da educação em Portugal a olhar-se para além das evidências.

Hoje, parece urgente lançar o mesmo desafio à Educação de Adultos para percebermos medidas, comportamentos, opções e até evasões.

Acabar com a Educação de Adultos na forma como se vinha desenvolvendo nos últimos anos, é uma opção de classe, é estar contra um projeto emancipatório das classes sociais menos favorecidas, é querer dar a hegemonia do saber às classes sociais que dominam a sociedade.

É ir contra a mobilidade social ascendente dos cidadãos com baixas qualificações escolares.

Pegando nos velhos sociólogos fundamentadores da perspetiva crítica das funções da escola - Bourdieu & Passeron, Baudelot & Establet - atribuímos à escola a função de reproduzir, confirmar e legitimar as classes sociais junto dos mais desfavorecidos, contribuindo para que se mantenham na classe social de origem, e auto-atribuindo-se as culpa dessa situação "tornando-se vítimas do seu próprio destino".

Parece hoje, dito deste modo, um discurso demasiado simplista porque a realidade social e o conhecimento sobre ela produzido se complexificou, porque as classes sociais se desenvolveram escapando à dicotomia burguesia/proletariado e permitindo mesmo - como aconteceu nas décadas pós-25 abril, que alguma mobilidade social - sobretudo das mulheres - se conseguisse através da Escola.

No entanto não podemos negar que a estratificação social se continua a fazer nesta instituição, que a escola continua a confirmar a classe social de origem a muitas crianças e adultos e que o discurso social legitima a "sua triste sorte".

Sabemos que são as crianças de meios menos letrados quem encontra a porta da escola encerrada logo na entrada porque as famílias não souberam perceber a importância da escola e mesmo do conhecimento na sociedade atual pensando que poderão encontrar soluções como as que encontraram na sua vida, sobrevivendo na escala mais baixa! São as mesmas famílias que não conseguem dar aos filhos o envolvimento afetivo e pedagógico que lhes permita aprender a ler criando-lhes, através das suas práticas, a necessidade de o fazer, mostrando-lhes as suas funções sociais e começando a desbravar-lhes como a escrita se organiza (conceptualizações sobre a linguagem escrita).

 Situação que a escola, reprodutora das classes, acolhe. Quando a criança não aprende a ler - porque não detém as condições de partida - atribui as culpas à família não respondendo às necessidades que a criança evidencia fazendo um diagnóstico que lhes permita entrar no mundo da escrita. As boas práticas de algumas - raras escolas ou professores/as - mostram como isto se faz, como a reprodução não seria uma fatalidade. Mas a maioria não tem essa sorte. Não aprende a ler, ou lê mal, ou com dificuldade ou mesmo não entende o que lê e vai avançando no sistema sem esta competência base numa escola, num mundo de letrados. Um estudo do Haut Conseil de l’Education, em França, em 2007, mostra que são cerca de 40% das crianças nesta situação. Não dizem mas sabemos que sãos os filhos dos pais não letrados que aí se encontram. Não será de reprodução social que se trata? Reside aqui a diferença entre a perspetiva de criação de uma escola democrática que forneceria a mesma igualdade de oportunidades a todos, à partida, e de uma escola meritocrática que, retirando a estas crianças a hipótese de partida, de aprender o fundamental, as vai deixando a marcar passo toda a escolaridade vindo depois falar de mérito (escola meritocrática)

Em França (e não só!) alguns sociólogos denunciam o problema da reprodução mas aceitam-no como uma fatalidade da sociedade capitalista recusando a procura de alternativas. O debate sobre a chamada Educação Prioritária - em Portugal TEIP - começa certamente aqui. A criança não aprendeu a ler devidamente à entrada para a Escola mas nunca mais ninguém se lembra de a ensinar a ler. A consideração deste problema diminuiria certamente, em muito o número e as crianças que se encontram em insucesso na escola atual.

Mas voltando à Educação de Adultos, tudo parece funcionar quando a oferta continua dentro da Escola e utilizando as práticas que conduzem à reprodução. É esta situação que tem acontecido há mais de 40 anos em Portugal. Quando o Estado oferece Educação de Adultos controla-a dentro das fôrmas com que forma as crianças. Não é por isso de admirar que o sistema de Educação Recorrente não tenha quaisquer processos emancipatórios da população adulto nem sequer qualquer eficácia em termos de sistema educativo. As pessoas não aderiam, desistiam ou abandonavam não aprendendo uma vez que a oferta não lhes era adequada.

 À luz da sociologia da educação percebemos: a eventual mobilidade, conseguida através da educação, teria de permanecer controlada - como acontece com a das crianças - impedindo números significativos de adultos de encontrar uma fileira emancipatória para a sua vida.

O que aconteceu com o sistema RVCC, Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências? Foi criado, inicialmente, um projeto diferente, paralelo à escola, que permitia o acesso ao conhecimento de uma população que tinha sido colocada quase na escala mais baixa da sociedade. Criou-se um sistema, com formas diferentes das escolares, que possibilitava o acesso ao saber e, na sociedade do conhecimento, o acesso à mobilidade. Não se tratava de reproduzir um conhecimento construído por terceiros - reproduzindo-o - mas, através da reflexão sobre o seu próprio conhecimento construir novos saberes dialogando com outros, enriquecendo-o. Era um modo de aprender diferente do que a maioria das escolas propunha. Não se tratava de aprender o que não se tinha tido oportunidade noutros tempos, mas de construir sobre aquilo que se era hoje, a partir do saber que se tinha reconstruído ao longo da vida. Não eram práticas que diziam "tu não sabes, vais aprender o que nos interessa", mas sim "tu aprendeste muito na tua vida, vamos reconhecer o que sabes e partir daí para aprenderes mais, sobretudo o que precisas. Não estamos aqui para te inculcar saber mas para dialogar contigo e assim aprendermos também".

Foi este o sucesso do programa. Por isso as pessoas procuravam o processo, aprendiam, gostavam. Não tinham que procurar o saber humilhando-se pela sua ignorância, mas com satisfação sabiam que iam aprender mais a partir daquilo que era seu, que a vida tinha ajudado a construir, reconhecendo-o, validando – “sabes tanto como os outros” - certificando, com isto obtendo um diploma, um grau valido em escolaridade conseguida[1].

E sentiam-se felizes. Qualquer Centro que cumprisse devidamente este processo tem histórias de vida para contar, demonstra a expressão de felicidade daqueles que fizeram o RVCC e aprenderam, aprenderam muito; ganharam confiança em si próprios e aumentaram a sua autoestima. Os políticos no governo atual criticaram o sistema por esta razão, mas que governo não se deveria sentir realizado por ver os seus cidadãos felizes? Cabe aqui notar que, quem teve oportunidade de ler os ditos de pessoas que fizeram um RVCC teve a sensação de perceber que estava perante casos em que se conseguia a condição contra hegemónica de libertação nas palavras de Paulo Freire. Infelizmente muita esquerda, até sociólogos, calaram-se, quando o sistema avançava, não aceitando estas práticas como de liberdade. As pessoas de baixa condição social tinham expressões de libertação pessoal. Não só se sentiam melhor consigo próprias, sentiam reconhecimento daquilo que tinham feito na vida, sentiam autoeficácia porque eram capazes de fazer muita coisa nova, diferente. Sentiam cidadania.

Eram capazes de perceber o que lhes propunham no seu trabalho deixando de o fazer de forma maquinal, alienada. Sabiam avaliar competências o que lhes permitia descobrir como melhorar e até procurar emprego – sabem agora aquilo de que são capazes e conseguem entender a procura. Em todos os estudos em que tenho participado, neste domínio, cerca de 10% dos inquiridos têm mesmo conseguido arranjar alternativas no campo profissional através das competências adquiridas na Educação de Adultos.

“ (…) é uma mais-valia, e é para me aperfeiçoar mais no trabalho, eu sem isto já estava a fazer aquilo que eu estou a fazer, mas com isto consigo ir um bocadinho mais longe, esse é o objetivo” (E13; Sexo masculino; Meio Rural; Região Centro).

Não são estas as regras da escola. Por isto este sistema era alternativo. Fugia às regras do sistema escolar. Não assegurava o travão à mobilidade, antes a estimulava. As pessoas queriam aprender mais, muitas continuaram até no Ensino Superior. Muitas fizeram mais, outras formações. Porque gostavam de aprender. Tinham prazer.  Não é disto que falamos quando nos referimos à necessidade emancipatória dos trabalhadores? Não era de esta forma de libertação que Paulo Freire referia quando falava da importância da educação na libertação? Não terão as pessoas agora mais competências para se situarem nesta sociedade e tomarem decisões sobre a sua vida? Têm de ir, às vezes, por caminhos que não gostariam mas sabem por que o fazem tornando-se na única possibilidade de deles se libertarem. Descobrir novas vias de continuidade para as suas vidas.

Mas a sociedade atual não queria isto. Opunha-se a esta mobilidade. Era um desafio. Conhecemos este discurso de alguém importante no sistema: “já viu o que é o meu motorista ter agora as mesma habilitações do que eu? E até me vem dizer que vai entrar no Ensino Superior?!”. Se fosse um ou dois tudo bem, mas falava-se de milhões que procuravam o RVCC. Sabemos que não foram todos os que conseguiam porque o sistema exige mesmo algum trabalho e muitas pessoas não estiveram para isso. Mas os que queriam tinham uma saída adequada. E foram muitos. E vinha alterar a estabilidade do quadro da estrutura de classes. Vimos agora como as classes mais abastadas andavam a aproveitar estes sistemas para os perverterem em seu favor. É o caso do acesso a medicina através da Educação Recorrente; é o caso de um ministro que utilizou abusiva e desadequadamente o sistema de avaliação de competências no Ensino Superior para não se “licenciar”. E, decerto, de muitos outros que aproveitam qualquer interstício do sistema em seu favor, vindo depois denunciá-lo, criticando. Confesso que não conheci, nos estudos todos que tenho realizado, nenhum caso com o nível de perversão que conhecemos nas situações referidas.

O facto de serem muitos vinha desequilibrar o sistema de classes. Vinha até perturbar quadros teóricos. A escola estava a ser posta em causa. Muitos destes cidadão tinham recebido da escola um “não”. A escola tinha-lhes dito que “não davam para aprender”, que “deveriam ir trabalhar”. Mostrar agora que afinal conseguiam era atacar a função legitimadora da Escola na sua construção da excelência escolar. Por isso, muito poucos investigadores tiveram a ousadia de estudar o que se estava a passar. Preferiam calar-se, incomodados, porque, também eles professores, talvez se sentissem em causa com estas mudanças devendo reinterpretar os seus quadros teóricos e talvez de vida.      

E os filhos?

Então se na génese do insucesso escolar está o atraso da escolarização dos pais que se refletiria no modo como (não) se envolviam na escolarização dos filhos – não tinham para os filhos um projeto de vida que passasse pela escolarização – e nas dificuldades (quase impossibilidades) que tinham na aprendizagem da leitura devido, sobretudo, à ausência de modelos parentais – a que a escola parecia indiferente e assim ia prosseguindo a sua função de estratificação social o que aconteceria agora que os seus pais se entregavam, com satisfação, à sua própria escolarização, que liam e escreviam em casa, que aprendiam com prazer? 

“Nós dizermos aos filhos “vai estudar” é muito fácil, mas quando os filhos vêm que os pais também são capazes de estudar, eu acho que começa a haver outra harmonia em casa.” (E37;Sexo feminino; Meio Suburbano; Região LVT)

Disseram-nos pais, de todo o país, que fizeram um RVCC certificado com o 9º ano e tinham filhos a estudar no 1º ciclo do Ensino Básico[2]   que o seu envolvimento era maior na escolaridade dos filhos, que gostariam que fizessem um Curso Superior, que agora já percebiam as suas dificuldades e que os sabiam ajudar e ”se não soubessem iam pesquisar”, que se sentiam capazes de falar com os professores, nas reuniões e participar nas atividades da Escola e que os seus filhos se sentiam orgulhosos de ver os pais aprender. Disseram ainda que os apoiavam nas atividades escolares, que liam e escreviam com eles, que faziam trabalhos e jogos na Internet com os filhos, que liam mais à frente deles criando assim as condições básicas para a formação de bons leitores. Mais importante ainda do que esta formação escolar estes pais e mães demonstravam o prazer por aprender, que transmitiam aos filhos, - o que a escola muitas vezes não faz - fundamental na sociedade do conhecimento numa perspetiva de aprendizagem ao longo da vida.

Também por esta via a escola começa a perder a hegemonia no controlo da confirmação da classe social. Alguns professores – que inquirimos – declaravam que as crianças se sentiam agora mais motivadas e parecia que aprendiam com mais facilidade. A Educação de Adultos estava a ter um efeito duplo: dava empowerment aos pais e facilitava o sucesso escolar dos filhos.

Uma das novidades deste sistema, criticada por alguns, foi o facto de se ter instalado nas Escolas. Também pensei que fosse esse um processo de terminar estas novas alternativas tal como tinha acontecido noutros momentos da história destes últimos 40 anos. Quando a Educação de Adultos passou para a escola foi pervertida acabando por escolarizar-se e assim por morrer pela sua própria ineficácia. No entanto, talvez por ter passado para as escolas com um modelo criado e já bastante desenvolvido pela sua estrutura primitiva – os Centros de RVCC – a maioria dos Centros situados em Escolas conseguiram implementar este sistema, tendo até efeitos positivos no interior de muitas escolas. Não foi a escola que perverteu a Educação de Adultos, mas estas novas perspetivas de educação de adultos que entraram em Escolas tocando, em muitos casos os discursos e as salas de aulas do ensino dito formal[3].

Talvez por tudo isto, este novo sistema estaria a tirar os poderes da escola denunciados pela Sociologia da Educação criando formas alternativas de desenvolvimento pessoal e social dos cidadãos. Dava-lhes acesso a uma maior cidadania – a eles e aos seus filhos – fazia-os ganhar consciência das suas capacidades, aumentava a autoeficácia nos seus vários contextos de vida, tornava-os mais conscientes, por isso, mais críticos, poderemos mesmo dizer que se tratava de um contexto emancipatório.

Foi pena que este sistema se mantivesse quase que na clandestinidade. A Comunicação Social recusava-se a falar dele. Mesmo os sectores mais progressistas. Os sociólogos da educação passavam ao lado. Apenas os professores e animadores que trabalhavam neste domínio ou o conheciam de perto se batiam por ele. Agora que está ser destruído vai ser fácil atacar o Governo por isso mas também muito poucos o fazem. Não nos podemos esquecer que a nossa classe média, mesmo progressista, maioritariamente, se promoveu através da Escola e não perdoa que outros se emancipem passando por outra porta. 

Penso que fomos apanhados de surpresa com este processo. Que seria importante continuar a refleti-lo e até a falar dele. Habituámo-nos apenas a reconhecer a aprendizagem quando aparece de formas percetivas: alguém que ensina algo a outro e que este outro reproduz. Não nos ensinaram a reconhecer os modos mais cognitivos de aprendizagem em que aprendemos pelas nossas próprias reflexões sobre o que vivemos e sentimos. Passávamos o construtivismo como mais uma corrente entre outras e a maior parte das nossas aprendizagens é por esta via.

Na escola, na universidade, debita-se matéria sem dar tempo às pessoas para as aprenderem para as fazerem interagir com os saberes que já possuem.  

Perceber o que se passa e ser capaz de denunciar este governo pelo que está a fazer aos processos de Educação de Adultos que conduziam, de facto, a situações de cidadania quer em relação a sua emancipação quer em relação ao próprio emprego exige a mobilização de todos os sectores das ciências da educação, das ciências sociais e de todos os campos epistemológicos que têm como projeto a libertação dos cidadãos sobretudo os das classes sociais menos favorecidas. Lucília Salgado


[1] Este sistema de RVCC, criado em Portugal por Alberto Melo no Governo de Ana Benavente vem na mesma linha de um outro programa político, também criado por Alberto de Melo - secundado  também por Ana Benavente – em 1975 onde “O Estado reconhece e apoia” as atividades e práticas educativas desenvolvidas nas Associações Populares.

[2] Salgado, Lucília (coord.) 2012. O Aumento das competências Educativas das famílias: um efeito dos Centros de Novas Oportunidades. Lisboa: ANQ

[3] Seria necessário realizar alguns estudos neste domínio

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