Artigo

Educação Inclusiva, uma Questão de Sociedade | Inclusive Education, a Society Issue

 Ana Benavente. Artigo publicado em outubro de 2011 

Não vos venho trazer mais conhecimentos, referências práticas sobre o tema desta conferência mas sim algumas reflexões e perguntas que, espero, serão pertinentes para levarmos connosco.
Por isso, vou resumir algo do que SABEMOS, falar-vos, em síntese, do que VIVEMOS, e questionar o que FAZEMOS ou o que FAREMOS.
Então, O QUE SABEMOS, O QUE VIVEMOS E O QUE FAZEMOS OU FAREMOS quanto à Educação Inclusiva, enquanto questão de sociedade, é o meu contributo para esta Conferência sobre Educação Inclusiva.

1. O QUE SABEMOS

- Sabemos que a escola e a educação não são campos nem instituições social e politicamente neutras. Sabemo-lo muito bem. A Escola é uma instituição histórica e socialmente criada; e, por isso pode, noutro tempo histórico e noutros contextos sociais, ser transformada. É aí que reside a nossa esperança e se enraíza o nosso trabalho.
Trata-se da “instituição mais generosa” da democracia e basta ver como os regimes autoritários dominam a escola e dela privam a maioria da população, para termos a certeza de que muito se joga na educação das pessoas.
No entanto, nos dias de hoje, a escola tradicional, a que herdámos do passado, a escola livresca, baseada na escrita e não na acção, na palavra do professor e nos manuais, indiferente à diversidade cultural, essa escola que pretende ensinar a todos “a mesma coisa, da mesma maneira e ao mesmo tempo” ou, dito de outro modo, “ensinar a todos como se fossem um só” é, ela própria produtora de exclusão. E dura, e dura e dura… essa escola de exclusão.
O mais grave é que exclui aqueles que dela mais necessitam: as crianças e os jovens que vêm dos meios pouco ou não letrados e todos aqueles, meninas e meninos, que conhecem melhor do que eu, que não encaixam na definição de “aluno ideal”.
Nos anos 60 do séc. XX, este modelo de escola foi longamente analisado e desconstruído por muitos autores, entre os quais não posso deixar de citar Pierre Bourdieu.
Mas já desde o início do séc. XX começou a procura de uma escola mais inteligente e flexível, capaz de ensinar a todos, com as pedagogias novas, hoje reforçadas por propostas mais recentes, assentes em “boas práticas” que existem, de modo minoritário, em todos os países.
As análises dos modos de produção da exclusão escolar têm sido retomadas na actualidade, pois há muitas diferenças entre as sociedades e as escolas de há 50 anos para cá. Hoje, a sociedade pede muito mais à escola, como sabemos.

Em suma, com novos contornos, continuamos a viver uma exclusão provocada pela relação que a escola, as práticas e relações que a dominam, estabelece entre a sua lógica e as diferenças e desigualdades sociais e individuais (estas porventura mais exigentes porque ainda mais diversificadas).
Que dizer de uma menina de seis anos que há poucos dias disse à mãe - surpreendida com a notícia e com o vocabulário até então desconhecido - que uma colega, “a Erica, menina cigana, já “chumbou” no 1º ano de escolaridade, segundo tinha dito a professora e que “chumbar” era uma coisa muito má”. Que dizer de uma notícia assim menos de um mês após o início das aulas? Há aprendizagens muito rápidas e a da exclusão é uma delas.

- Sabemos que a inclusão acompanha o desenvolvimento das sociedades, das democracias e da cidadania. Antes do 25 de Abril, na “minha” escola primária havia meninas que agora dizemos com necessidades educativas especiais que por lá andavam, sem que os professores soubessem o que fazer, até desaparecerem. Em Africa, quando se pergunta sobre dificuldades na realização da Educação Para Todos (EPT) raramente, mesmo muito raramente aparece alguma referência isolada a meninos com tais características. Em grupos ameríndios da Amazónia não existem sequer. É com o avanço dos direitos individuais e da maturidade democrática que a Educação para Todos se torna um desafio, e mais fortemente ainda para os mais vulneráveis.

- Sabemos que ter direito a significa, em sentido jurídico “o poder moral ou legal de fazer, de possuir ou de exigir alguma coisa” Ora todas as crianças e jovens, todas as pessoas têm direito à inclusão na sociedade em que nascem, salvo opções individuais de dissidência de adultos maiores de idade na posse da sua plena razão. Não é disso que aqui se trata.
Na frase consagrada de Boaventura de Sousa Santos (1995) temos “o direito de sermos iguais quando a diferença nos inferioriza e de sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”.
E é precisamente isso que acontece com todos nós, não há uma só fôrma, uma só forma de ser, de pensar e de viver. Todos diferentes, todos iguais. A cada um segundo as suas necessidades, sabemo-lo da vida, da educação e, em particular, sabemo-lo da educação inclusiva.

- Sabemos que é já longo o caminho percorrido. É imenso, em Portugal, nas últimas décadas. E não queremos voltar para trás.
Há saberes estruturados e experimentados na prática, enraizados nas ciências sociais e humanas, sobre pedagogias, sobre organização sobre boas práticas, sobre suportes e materiais capazes de apoiar um trabalho de inclusão que desenvolva ao máximo as potencialidades de cada pessoa.
Nas redes sociais, há grupos centrados na educação inclusiva e o manancial de informações, de estudos, de referências, de saberes, é impressionante.

- Sabemos que há textos de referência mundial, internacional, que apelam à inclusão, UNESCO, EPT, Objectivos do Milénio, para já não falar da declaração de Salamanca e de outros numerosos textos nacionais.
São textos muito importantes porque o mundo seria pior se não existissem.
Estes textos funcionam como referências contra a barbárie e devemos mobilizá-los, lembrá-los, actualizá-los, tê-los sempre presentes.

- Mas, como também sabemos, as contradições são grandes entre textos, políticas e práticas. E as razões para essas contradições são várias: são de ordem política, mas também de ordem social e profissional.
Nas razões de ordem política, basta referir as rupturas e descontinuidades no nosso país (e noutros) confirmando que a educação e a escola são, como a saúde e o trabalho, campos de intervenção política e ideológica.
As políticas de cada governo traduzem concepções de sociedade que demasiadas vezes ignoramos.
Nas razões de ordem social, basta referir o peso dos comentadores da média e de quem intervém socialmente. Pertencem, em geral, às elites escolarizadas, presas a modelos de escola tradicional que, se resultaram para eles, terão que resultar para os mais novos. E é muito mais fácil confortar o senso comum e as declarações que começam por “no meu tempo…” do que defender a construção de novos modos de agir e de educar. Modernices, ouvimos muitas vezes, fantasias ingénuas, ouvimos outras tantas. E, para além da ideologia, há um argumento sem apelo nem agravo: os custos. “Areas interdisciplinares com 2 professores?” “Professores de apoio especializados”? Muito caro.
Mas também há razões profissionais para a distância entre os textos que tanto nos dizem e as práticas concretas e estas residem na formação inicial e contínua e no modo como cada professor entende e investe na sua profissão.
É bom não nos deixarmos de fora das contradições entre políticas e práticas.

- E isto porque também sabemos que houve ocasiões desperdiçadas ao longo dos últimos anos, houve momentos em que todos nós poderíamos ter feito mais e melhor. E isto acontece porque a inovação em educação exige tempo, esforço, condições e envolvimento das pessoas, dos grupos e das organizações que nem sempre existem. Ou não existem ao mesmo tempo. E a política no sentido estrito, no sentido de quem foi eleito e governa, tem sempre pressa, muita pressa em apresentar resultados, “coisas” feitas, bandeiras para próximas eleições. A educação, para além da inauguração de escolas (com as inevitáveis placas nominais) e de recursos materiais visíveis (laboratórios, campos de jogos, Magalhães) é-lhes, deste ponto de vista imediato, muito pouco favorável.

- Não esqueço também as brutais pressões para a conformidade, de que os rankings sazonais são um dos exemplos com muito impacto social.
Na recente publicação dos rankings deste ano, lemos a auto-satisfação dos jornalistas que publicam estas listas acéfalas de resultados de exames sem se perguntarem, por exemplo,
quem são, socialmente, os alunos dos colégios que ocupam os primeiros lugares?
Quantos alunos frequentavam o 12º ano e quantos foram reprovados sem ir a exames finais?
Podem comparar-se 200 e tal alunos numa escola com 16 alunos noutra?
E muitas outras questões que, pela força mediática, quase já nos inibimos de formular.
Se há alguns anos atrás não se publicavam estes resultados a razão era simples: não havia a possibilidade de os ponderar de modo significativo e inteligente e não é possível ler os resultados dos exames e respectivas escolas nos exames como os de uma liga de futebol.
Mas como santos de casa não fazem milagres, façamos uma referência a Gerg Biesta, especialista do Reino Unido, entrevistado no Público, aquando (na semana passada, 15.10.11) da divulgação dos ditos rankings:
Diz ele “os rankings tornam a discussão simplista e dão a impressão que só interessa – na escola – um pequeno número de factores – os resultados dos exames”. Nada que não tenha sido dito e repetido por muitos de nós em todos os tons.
A inclusão que aqui nos ocupa vai muito para além dos resultados a um exame escrito.
Um recente relatório da OCDE (abril de 2011) mostra que Portugal está, com a Austrália, o Canadá e um pequeno grupo de outros países, à frente quanto à inclusão, no sentido de atenuação das desigualdades sociais na escola.
Mas disto não se fala. (consultem o site do OP-EDU).

- Finalmente, sabemos que a escola, a quem se pede muito mais que no passado, em tempo e em domínios, da guarda dos mais novos à “disciplina” dos mais velhos e da educação sexual à educação ambiental (os exemplos são muitos), se tornou no bode expiatório dos males sociais.

E termino com as palavras de J.L. Peixoto, jovem escritor que muito gosto de ler e de ouvir, publicadas na Visão de 13.10.11:
Diz ele “Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança.”

2. O QUE VIVEMOS

- Vivemos uma crise, cuja natureza é a opacidade (cada um de nós terá as suas explicações, esperando que não façamos nossas, acriticamente, as que todos os dias nos servem, até à exaustão, dizendo que a culpa é nossa, que gastámos demais e que, por isso, 99% da população tem que pagar o que 1% ganhou, gastou, roubou ou desviou).
Isto sem negar, evidentemente, que há uma parte de dívida legítima que devemos pagar, mas não é essa que nos sufoca, mas sim, na minha opinião, os juros agiotas, a má gestão dos dinheiros públicos, as incompetências dos dirigentes nacionais e internacionais e as desigualdades internas e externas gritantes.
A crise serve para justificar cortes nas despesas do Estado que não são inocentes.
- Em períodos com estas características quem mais sofre são os mais vulneráveis
Aliás, os pobres fizeram, com o actual governo, uma plena entrada política e soberana na nossa vida institucional, nos serviços, no quotidiano, como se de uma fatalidade se tratasse. A pobreza e a caridade que a consola. Rejeito absolutamente tal ideologia e as políticas que a traduzem, com as recordações ainda tão presentes dum passado da minha infância, nos anos 50, que pensava desaparecido para sempre.

- Vivemos uma situação de castigo aos professores de um duplo modo, enquanto funcionários públicos e enquanto educadores. Porquê?

- Porque a educação é o sector em que mais meios se cortam em nome da “crise”.
O OE para 2012 baixa a percentagem do PIB para a educação de 5% (a média europeia é de 5,5%) – e o que nos custou lá chegar – para 3,8%.
Temos assim a atribuição financeira mais baixa dos 27 países membros da União Europeia. É muito grave.
Mas, ao mesmo tempo, uma portaria de 13.10.11, (portaria 277/2011) aumenta em mais de 5.000 euros por turma o financiamento oficial do ensino privado. Dois pesos e duas medidas.
Temo que estas opções, para além da asfixia das escolas públicas e da educação inclusiva pela qual tanto temos batalhado, traduza a vontade de criação de um sistema dual entre público e privado – a profecia que querem cumprir.
E ontem mesmo li, no Público (uma vez mais) a seguinte notícia:
e cito “dezenas de crianças portadoras de deficiência de várias zonas do país estão há um mês sem ir às escolas de referência porque o MEC e algumas direcções regionais ainda não clarificaram se pagam ou não os respectivos transportes”. E a notícia refere ainda o desespero de “muitas famílias com meninos com espectro de autismo, multideficiência ou surdez”. Acrescentam que “estes centros estão por vezes a mais de 40Kms de distância” e falam de “meninos excluídos e de situação insuportável”. Fim de citação.
O Ministro, que tem os filhos a estudar nos Estados Unidos, afirmou que queria, para Portugal, um sistema educativo como o dos Estados Unidos e do Reino Unido. Não acreditaria se não tivesse ouvido. E não lhe exigimos que se explique? Não lhe exigimos que explicite políticas e medidas? Que divulgue um programa que nunca apresentou? Ou a crise serve para justificar qualquer decisão pontual, inesperada, destrutiva? Com que à vontade deixamos e deixam os nossos deputados que tais afirmações apareçam como “naturais”.

- Vivemos num clima social em que todos os dias nos repetem “que vai ser pior”. Talvez por isso, vivemos no segundo país com maior taxa de depressão (e o segundo, NO MUNDO, em que nascem menos crianças, o que nos deveria fazer pensar muito seriamente).
Num estudo ontem divulgado, entre 40 países estudados, os portugueses são o povo mais desconfiado e mais triste - só os chineses e os húngaros, parece, se sentem mais tristes do que nós.
Por mais que nos juntemos uns aos outros, que trabalhemos em conjunto, tudo isto nos afecta. É por isso que gostaria agora de dizer umas palavras sobre o Que FAZEMOS ou O QUE FAREMOS.

3. O QUE FAZEMOS OU O QUE FAREMOS
- Do ponto de vista pessoal
- Do ponto de vista profissional
- Do ponto de vista cidadão

São decisões individuais, certamente. Mas quando é a própria escola inclusiva que está em perigo, quando a democracia se torna mais do que formal (os cortes salariais sem qualquer negociação são disso um exemplo), quando se acentua o divórcio entre eleitores e eleitos, quando se caminha para o desastre, torna-se um imperativo moral não ficar indiferente.
Para aliviar o ambiente, deixem-me dizer que a propósito da anulação de feriados, há quem proponha que desapareça o 10 de junho, pois quem manda em Portugal é a troika.
Por respeito por nós próprios, pelos meninos e meninas que contam connosco, pelas pessoas e pelas organizações com quem trabalhamos, não podemos olhar para o lado, fazer um pequeno mealheiro em nossas casas, levar o almoço para a escola ou para o trabalho e esperar que a dita “crise” passe sem nos atingir mais do que o suportável. Devemos isso a nós e aos outros, às pessoas, que não são cifrões nem podem ser substituídas pelas coisas.
O discurso dos custos que tudo justifica para os mais dependentes e vulneráveis, já o disse, é o mais perigoso e venal que entra nas nossas sociedades e nas nossas vidas, nos termos em que é feito.
Ao preparar esta intervenção, lembrei-me dum célebre poema atribuído a B. Brecht e que tem várias versões, uma metáfora que considero muito actual:

Quando vieram buscar os comunistas,
eu não disse nada
porque não era comunista.

Quando vieram buscar os judeus,
eu não disse nada,
porque não era Judeu.

Quando vieram buscar os sindicalistas,
eu não disse nada,
porque não era operário nem sindicalista.

Quando vieram buscar os católicos, eu não disse nada,
porque eu era protestante.

E quando vieram buscar-me,
já não havia ninguém que pudesse protestar.

Pensemos nesta metáfora, não olhemos para o lado, não podemos ignorar o que se passa no nosso país, na Europa e no Mundo.

- Para que haja mudanças positivas, é preciso QUERER, SABER E PODER.

Estão-nos a tirar o Poder, não deixemos que nos tirem o nosso saber e o nosso querer, a nossa competência profissional e a nossa vontade. Porque, se o deixarmos, tiram-nos a ESPERANÇA. Pensem por um instante nas meninas e nos meninos com quem trabalham, pensem nos que aqui estiveram, felizes, a cantar, a dançar, a representar. Pensem nas pequenas vitórias que têm conseguido ao longo da vida profissional. Pensem no vosso esforço e na nossa profissão. Estamos dispostos a voltar para trás? A abandonar o que conquistámos? A calar o que sabemos? A desistir da Educação Para Todos?
 

Concluindo: Será a educação inclusiva uma utopia? Não o creio.
Mas a utopia faz falta.
Ouçamos as palavras de Eduardo Galeano, escritor uruguaio. Diz ele:

“A utopia está no horizonte. Aproximo-me 2 passos e ela afasta-se 2 passos. Caminho 10 passos e o horizonte corre 10 passos. Por mais que eu caminhe, jamais o alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.

Sabemos, pela história dos povos e pela nossa própria experiência, que sem utopia teríamos ficado eternamente escravos e ignorantes, não teríamos vivido a inclusão como um propósito. Foi sempre a utopia e a luta que tornaram as sociedades melhores e fizeram avançar a democracia no mundo. Com muitos sobressaltos e retrocessos. Com ameaças sempre presentes.
Por isso, o futuro depende de todos nós e, quer queiramos quer não, temos responsabilidades pessoais, profissionais e cidadãs. Vamos exercê-las de modo positivo e corajoso. Cada um a seu modo, mas juntos. Porque a escola inclusiva é um desafio individual e colectivo. É uma questão da humanidade esclarecida e democrática.
E é por isso que estamos aqui. Juntos. Ana Benavente.

« Ensino superior – reformas em contraciclo | Higher education - counter cycle reforms - Reflexões sobre Educação para a Saúde | Reflections on Health Education »