Reflexões sobre Educação para a Saúde | Reflections on Health Education
Sandra Queiroz. Artigo publicado em dezembro 2011
O conceito de saúde tem evoluído ao longo dos tempos. O grande marco histórico de definição de Saúde, encontra-se na Carta Magna em que a concepção passa a incluir uma dimensão social e mental, ganha uma perspectiva mais global e holística, engloba o termo bem-estar em oposição ao que é definido como doença, e enfatiza a ideia de equilíbrio e harmonia. Assim, saúde passa a significar “um estado completo de bem-estar físico, mental e social, e não apenas ausência de doença ou enfermidade” (OMS,1946). Esta definição, que representa uma perspectiva mais positiva e que marca a grande mudança que a concepção de saúde sofreu, tem recebido continuamente alterações e influências, em função das imensas variedades de contextos e experiências humanas, históricas, culturais, sociais, científicas e filosóficas que foram acontecendo.
Em 1986, o mesmo órgão internacional, através da Carta de Otava emitida após a 1.ª Conferência Internacional sobre a Promoção da Saúde, acrescenta uma nova ideia, referindo que a Saúde constituiu “um recurso para a vida e não uma finalidade” (DGS,2003); nesta óptica, a Saúde passa a ter, como acontece a todos os recursos, um limite, pelo que, o indivíduo, ao conseguir controlar os seus recursos físicos, mentais, sociais, tem a capacidade de se adaptar às alterações do meio, e, em simultâneo, contribuir para o bem-estar dum grupo ou comunidade.
De forma idêntica ao que ocorreu ao conceito “saúde”, a definição de Educação para a Saúde e do que é o seu objecto de estudo e de intervenção, sofreu transformações, decorrentes da evolução das novas perspectivas de saúde e de bem-estar individual, comunitário e social.
Actualmente, encarada como “um processo baseado em regras científicas que utiliza oportunidades educacionais programadas por forma a capacitar os indivíduos, agindo isoladamente, ou em conjunto, para tomarem decisões fundamentais sobre assuntos relacionados com a saúde” (OMS, 1990), é possível verificar que esta concepção evidencia o papel formativo e fomentador de estilos de vida saudáveis do educador.
É através de acções de Educação para a Saúde que o indivíduo toma decisões conscientes sobre o que são as suas escolhas mais saudáveis, é estimulado a interagir com os indivíduos da sua comunidade, promove acções para uma vida saudável e participa responsável e activamente no processo educativo. Os intervenientes no processo educativo não devem cingir-se a ser, apenas, meros divulgadores de informação; devem, pelo contrário, tornar-se genuínos dinamizadores da reflexão dos grupos e da comunidade, de forma a estimulá-los a interpretar o seu modo de vida e a reflectir os seus contextos, de maneira a poderem identificar e mobilizar os recursos disponíveis para se manterem saudáveis.
A Educação para a Saúde pode ser entendida como a promoção da literacia em saúde e a actividade educativa tem como principais finalidades: aumentar a consciencialização das comunidades sobre as questões relacionadas com a saúde dos seus membros, colocar as questões da saúde na agenda das pessoas, auxiliar a aquisição de conhecimentos e competências e promover atitudes favoráveis à saúde e à promoção de valores de bem-estar e equilíbrio.
A Educação para a Saúde é, pois, uma estratégia de promoção da saúde. Assim, um aspecto fundamental das actividades promotoras da saúde é a comunicação e o facto dos seus fundamentos teóricos terem ligações bem estruturadas com a educação e o marketing social. De acordo com a OMS, a Educação para a Saúde é “uma acção exercida sobre os indivíduos no sentido de modificar os seus comportamentos, a fim de adquirirem e conservarem hábitos de saúde saudáveis, aprenderem a usar os serviços de saúde que têm à sua disposição e estarem capacitados para tomar, individual ou colectivamente, as decisões que implicam a melhoria do seu estado de saúde e o saneamento do meio em que vivem” (OMS, 1969).
Entendida como um processo indispensável numa sociedade, a Educação para a Saúde, permite que o indivíduo ou as comunidades adquiram conhecimentos e competências necessárias para a adopção de modos de vida saudáveis. As intervenções de Educação para a Saúde têm um carácter formativo, uma vez que conseguem integrar processos cognitivos e atitudinais, que permitem a modificação de comportamentos, tornando-se numa acção, permanentemente, consciente, racional e voluntária.
Fazendo uma breve abordagem da evolução do processo de Educação para a Saúde, importa identificar os modelos que caracterizam a primeira geração e todos os que se seguiram.
Nos primeiros modelos de intervenção, o enfoque situava-se nos modelos informativos, uma vez que se considerava que a informação era o elemento essencial de todo o processo educativo. O conceito de saúde que subjaz a estes modelos é um conceito negativo, patogénico, entendido como “ausência de doença” (García Martínez et al, 2000). Há, nestes modelos, uma assumida influência do modelo biomédico, valorizando-se a prevenção da doença aos níveis da prevenção primária, secundária e terciária, o que levava o educador a persuadir o indivíduo a escolher estilos de vida que reduzissem o risco de contrair doenças e que facilitassem a recuperação da saúde. Nos modelos de primeira geração, as formas de intervenção mais comuns são as palestras ou as campanhas de informação, tendo o educador a responsabilidade de promover as alterações dos hábitos de vida dos sujeitos; para que tal fosse possível, o educador definia e seleccionava os conteúdos a transmitir nas sessões educativas e a sua acção centrava-se na transmissão de conhecimentos e valores, numa vertente essencialmente manipuladora dos sujeitos que não admitia nem reconhecia a capacidade de escolha dos indivíduos.
O advento dos modelos de 2ª geração mudou, significativamente, o tipo de intervenção na área da Educação para a Saúde. Nestes modelos, ocorre uma evidente desvalorização do aconselhamento clínico e prescritivo. Passa a fomentar-se e a valorizar-se a importância da negociação e da colaboração, permitindo que os indivíduos possam ser informados e orientados para uma tomada de decisão livre e consciente. O desenvolvimento destes modelos, apoiou-se em várias teorias da aprendizagem, principalmente nas que valorizam o processo cognitivo como forma de induzir as mudanças de comportamentos e atitudes. Os teóricos da linhagem da 2ª geração postulam que a aprendizagem tem lugar quando os indivíduos percepcionam, entendem e interpretam a informação que recebem, o que os leva a alterar os seus procedimentos e hábitos de vida.
No que respeita à terceira geração, esta é designada de “Educação para a Saúde Crítica” e decorreu da Declaração de Alma-Ata (Programa de Saúde para todos no ano 2000). Existe, nesta perspectiva, a valorização da participação comunitária, isto é, os indivíduos e as famílias têm responsabilidades no que respeita à sua própria saúde e bem-estar, assim como no da comunidade, contribuindo desta forma para o desenvolvimento individual e colectivo. Esta perspectiva apoia-se numa cultura social e democrática, propondo alternativas de mudanças sociais, com o fim de reduzir as desigualdades e potenciar a participação comunitária (Moreno et al, 2000).
Nestes modelos de 3ª geração, a Educação para a Saúde, para além de modificar comportamentos individuais, envolve o meio ambiente e as instituições sociais. Há neles uma interacção educativa individualizada de informação sobre a saúde à população, com o objectivo de desenvolver, no indivíduo, a autonomia e a responsabilidade para concretizar uma melhoria de estilos de vida que influenciem directamente a saúde.
Quanto ao processo educativo, percebe-se que estes modelos atribuem grande importância aos métodos e estratégias didácticas e que se apoiam em diferentes bases científicas: psicológica cognitivista, humanista, psicologia de grupo, teoria crítica do ensino e modelo dialógico de Paulo Freire (Santos, 2000).
Os modelos de Educação para a Saúde pertencentes à 3ª geração que têm vindo a emergir, caracterizam-se pela tomada de consciência social por parte dos indivíduos que, em interacção dialéctica com a comunidade, promovem mudanças de comportamentos individuais que acabam por influenciar a mudança social. Os modelos, desenvolvem-se a partir de situações socialmente vivenciadas, nas quais o educador assume o papel de orientador e cuja acção se circunscreve à ajuda na definição dos objectivos e ao apoio nas medidas que o grupo decidir implementar. É o grupo que define, também, quais são os temas prioritários e quem são os indivíduos que vão participar nas actividades educativas.
Este modo de funcionamento contribui para a união dos indivíduos, visa a resolução do problema e, em última análise, contribui para o desenvolvimento da comunidade ou e da sua organização. Entende-se que, se não houver uma participação activa da comunidade, não é possível efectuar nenhum programa de Educação para a Saúde, pois o seu êxito está dependente da interacção dialéctica entre os indivíduos e a sua realidade, valorizando-se, deste modo, a autonomia dos indivíduos e dos grupos sociais na determinação de estilos de vida e sua modificação (García Martínez et al, 2000).
Espera-se que a Educação para a Saúde melhore a consciência da comunidade sobre as origens sociais das doenças e o impacto que o ambiente tem na saúde; é igualmente importante, promover a aprendizagem, relacionando-a com a saúde e com a doença, para que as tomadas de decisão sejam fundamentadas em informações objectivas, as opções tomadas tenham como principal finalidade melhorar a saúde das populações e que aquelas tenham sido seleccionadas de forma absolutamente livre e informada (Amorim, 1999).
Por outro lado, sendo a Saúde considerada como um valor positivo, a ela deve estar associada uma ideia do desenvolvimento de competências pessoais e socais, ficando definitivamente excluída a ideia de um valor negativo, proveniente da ausência de doença.
Mas afinal o que o que distingue saúde e doença? Poderão estes conceitos estar objectivamente definidos? Com o desenvolvimento científico é aceitável, para maioria das pessoas, a dificuldade em concretizar uma distinção entre saúde e doença (Roper et al, 1995), assim como não é possível demonstrar o ponto de ruptura entre um estado de saúde e de doença, isto é, não existe uma fronteira seguramente objectiva sobre as características e o que diferencia estes dois estados. Assim sendo, não se consegue definir de forma universalmente aceite os conceitos de saúde/doença, porque se verifica que são estados de difícil mensuração. Podemos mesmo afirmar que, estes dois conceitos, possuem uma relatividade a eles associada e têm adquirido, ao longo dos tempos, conotações diferentes, de acordo com as variações e os significados daquilo que é o corpo, as suas funções e a sua estrutura, e as mudanças associadas à forma como é entendida as relações entre o corpo, espírito, pessoa e ambiente.
Com o decorrer dos tempos, novas perspectivas têm surgido e verifica-se que existem ideias cada vez mais amplas e abrangentes, para explicar e definir o conceito de saúde/doença, tornando-o dinâmico e em constante mutação. O paradigma holístico reconhece, para este conceito, a harmonia entre o corpo, a mente e o espírito. Nesta corrente de pensamento, a saúde é restabelecida quando é reencontrado o equilíbrio entre a dimensão biológica, social, cultural, ambiental e psicológica, encontrando-se o indivíduo doente em resultado directo do desequilíbrio das diferentes dimensões mencionadas.
Os modelos que valorizam a saúde são designados de salutogénicos. A sua concepção valoriza os elementos que proporcionam saúde e que conduzam o indivíduo para a promoção ou manutenção da saúde (Antonovsky, 1987). Nestes modelos, valorizam-se as condições gerais implicadas na saúde, procuram-se elementos de antecipação à condição de doença e estabelecem-se estratégias comportamentais que reforçam e promovem a saúde. É, também, nesta perspectiva, que se defende uma atenção simultânea sobre os indivíduos e comunidades e se entende a importância da participação dos indivíduos no estabelecimento das condições que garantem a saúde, e no desenvolvimento das condições facilitadoras da saúde individual (García Martínez, 2000). Nestes modelos, o essencial é a busca de recursos que beneficiem a saúde. Cada indivíduo, nas diferentes etapas da vida, deve ser capaz de desenvolver o seu máximo de vitalidade. Compreender a saúde neste sentido, garante uma melhor qualidade de vida individual e colectiva (Nunes, 1999).
Em oposição ao modelo salutogénico, encontramos o modelo patogénico. Enquadrado neste paradigma, encontramos o pensamento de René Dubos descrito por Bolander (1998) cujas pesquisas demonstraram que é impossível a ausência de doença, dado que há uma comprovada e permanente necessidade de adaptação dos seres humanos a um ambiente sempre em mudança. Para este autor, saúde não é qualquer estado de vigor ou ausência de doença, ou mesmo uma vida longa. Ser saudável significa, que a pessoa pode funcionar, fazer o que quer fazer e ser o que pretende ser. Sandra Queiroz
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Amorim, C. (1999). Intervenção para autonomia de opção. In Trajectos e projectos. Viana do Castelo, 1, 17-21.
Antonovsky, A. (1987). Unraveling the mystery of health: how people manage stress and stay well. San Francisco: Jossey-Bass
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Bolander, V. E. (1998). Enfermagem Fundamental-Abordagem Psicofisiológica. Lisboa. Lusodidacta. 31-51.
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Roper, N; Logan,W.W.; Tierney, A. J. (1995). Enfermagem e assistência à saúde. In Modelo de Enfermagem. Alfragide:Editora MC Graw-Hill. 3-11
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www.dgsaúde.pt