Artigo

O logro da superficialidade ou o regresso do reacionário | The hoax of superficiality or the return of the reactionary

Piedade Gralha. Artigo publicado em janeiro de 2012

“Os conservadores parecem ser os únicos que olham de forma optimista para o futuro e são felizes proprietários de uma estratégia ofensiva que implementam. Porém o seu olhar para o futuro vive do passado. As suas estratégias não consistem em nada mais do que a redução nua e crua do programa de modernização à racionalização tecnológica, à qual se junta o ritual ensaiado de valores e normas, da “coragem para ensinar”, enquanto decoração conceptual. Nunca como hoje se compreendeu tão abertamente a miséria do sistema educativo e de formação como uma exigência de soluções técnicas. Como na sociedade em geral, também aqui se propõem soluções para a crise que simplesmente conciliam o inconciliável: a libertação total da luta social darwinista, todos contra todos, na base de uma dinâmica económica sem barreiras sociais e legais, de conservadorismo de valores, da ilusão da comunicação em rede e da ressuscitada ideologia da família.”

 Oskar Negt, Kindheit und Schule in einer Welt der Umbrüche, (Infância e Escola num Mundo de Mudanças), Göttingen, 1997.

Wilhelm von Humboldt contribuiu, há cerca de dois séculos, para um dos grandes debates da cultura europeia: quais os objetivos para que as pessoas são ou devem ser educadas e formadas e quais as consequências que daí resultam para as instituições. Para Humboldt, a liberdade era central no seu ideal educativo, o desenvolvimento da pessoa numa relação livre com o mundo. Ser-se «instruído», «culto», «educado» é, em primeiro lugar, ser-se pessoa. Segundo Humboldt, sabedoria e virtude, mas principalmente, capacidade crítica. Nos anos 60 e 70, na Europa, e nos anos seguintes à Revolução do 25 de Abril, em Portugal, encontram-se ainda vestígios da ideia que a Educação podia promover a emancipação de uma classe oprimida e assim também a emancipação dos respetivos indivíduos (Gramsci).
E hoje?
Não se pode pensar a escola sem pensar a sociedade. A política educativa Sócrates-MLRodrigues abalou fortemente os alicerces da escola pública democrática. As «reformas» tiveram um apoio quase total na opinião publicada e mesmo em largos setores da opinião pública. Compreende-se: quanto mais precárias são as perspetivas económicas e profissionais de largas camadas da população, melhor se vendem as chamadas «reformas inadiáveis». Alguém duvida que só uma «boa formação escolar» constitui a única segurança contra as vicissitudes de um impiedoso mercado de trabalho globalizado?
Na Europa, nomeadamente na Grã-Bretanha, passo a passo e persistentemente o sistema público de ensino tem sido envolvido em estruturas empresariais. As medidas são sempre as mesmas, sejam tomadas em países ricos ou pobres: livre concorrência das instituições, livre escolha dos estabelecimentos de ensino pelos “clientes”, bolsas, propinas ou cheque-ensino, que podem ser trocados nas instituições ou numa formação dispendiosa.
A retórica neoliberal relaciona sempre o mercado com a “liberdade”, o Estado com a burocracia, que impede a “abertura à sociedade civil”, “a concorrência” e as “reformas necessárias”. Aqui capitaliza-se o crescente descontentamento da população com a situação do sistema público de ensino, cuja suposta “situação ruinosa” faz parte da estratégia. Cada escândalo, cada caso de indisciplina é água no moinho dos defensores da privatização. Quem está disposto a fazer tudo o que é possível para proporcionar a melhor educação aos seus filhos, a cada notícia sobre a situação catastrófica nas escolas públicas, está mais disposto a pagar do seu bolso colégios particulares.
Todos os que trabalham nas escolas ou nas universidades podem confirmar que quanto mais se grita pela liberdade e autonomia mais aumenta o controlo e a regulamentação. Com a “liberdade” vêm os exames nacionais e uma série de provas e exames que têm de ser implementados e avaliados nas escolas. Quanto mais “livres” são os professores nos estabelecimentos escolares, mais desavergonhados são os rituais de submissão exigidos. O Sr. Director submete-se aos “de cima” e exige submissão aos “de baixo”. A ficção de actores autónomos é encenada nas roupagens de definições de objectivos.
Os omnipresentes “ranking” e “rating” também fazem parte da retórica neoliberal na política educativa. A questão não é tanto quem ocupa que lugar. A falácia do ranking das escolas, ao qual o Público tem dedicado ao longo dos anos páginas e páginas, está bem à vista. A questão central é que o primeiro tem de espezinhar para manter o seu primeiro lugar. O efeito é sempre o mesmo: a destruição dos interesses comuns e a alimentação da concorrência.
Na linha de Maria de Lurdes Rodrigues, também em Crato não se encontra nenhuma referência a qualquer das categorias principais de uma filosofia da educação. Quais são as suas visões e ideias centrais? Isto é, quais são os valores desta política educativa? A recusa em discutir as questões «Para onde?» e «Para quê?» é já uma posição ideológica que urge desmontar.
A “escola nova” que esta gente pretende impingir em nome da modernidade é de confrangedora indigência conceptual. Fala-se muito de “desafios” com que as pessoas se veriam confrontadas. Os objectivos da educação são apresentados como sendo mais extensos, múltiplos e complexos do que nunca, contudo, para além destas constatações generalistas todo o resto soa muito “pragmático”. Todas as (pobres) intervenções de Crato sobre educação deixam somente claro que não se parte de uma “imagem ideal da escola”, mas sim de uma suposta “base realista”. É o discurso lapidar que ouvimos vezes sem conta: “as escolas têm de melhorar – nisso todos estamos de acordo – e todos também estamos de acordo que urge efectuar essa mudança já que se trata das possibilidades de aprendizagem das nossas crianças e jovens e com elas da capacidade de a nossa sociedade estar melhor preparada para o futuro.”
Cruzado da luta contra a “má qualidade das escolas”, a espantosa resposta que Crato deu a esta situação, depois da resposta da sua antecessora ter sido a alteração do ECD e a avaliação de desempenho docente, foi a introdução de exames no 6º ano, as chamadas «metas curriculares», o reforço da disciplina e autoridade e, pasme-se, a punição dos pais por mau comportamento dos filhos nas escolas. Todo um programa. A saudade de castigo, autoridade e subjugação chegou a alguns círculos da sociedade. O pensamento reacionário está de novo na moda em largas camadas político-culturais. Sem me alongar muito, a introdução funcional da «Autoridade» como «Autoridade institucional» é justificada com a legitimidade dos seus objetivos – nomeadamente a educação do jovem. Sabe-se que a imposição da «autoridade institucional» através do castigo não tem resultados positivos em pedagogia.
Se a preocupação real fosse a qualidade das escolas, poderia ter levantado outro tipo de questões: o que devem aprender os alunos prioritariamente? Matérias e proficiências para ter sucesso na profissão e mercado de trabalho ou antes qualidades e capacidades para uma vida com sucesso? Questões fundamentais como esta não foram sequer referidas, quanto mais reflectidas e debatidas.
Não será preciso muita imaginação para avaliar as consequências, caso a revolução neoliberal na educação não encontre firme resistência social e política: para largas camadas da população a formação será cara e de má qualidade. Apesar de os custos aumentarem continuamente para os “clientes”, a educação para a maioria da população manter-se-á cronicamente subfinanciada, porque o financiamento será concentrado nas escolas e universidades de “excelência”, as tais que produzirão as “elites” agora tão em voga.
Um sistema de ensino mercantilizado será sempre um sistema de ensino anti-democrático. Onde reina a economia e o controlling, cada forma de participação democrática não passa de uma falácia. Os problemas da política educativa não se esgotam portanto, na avaliação e estatuto dos docentes, na revisão curricular, disciplina, autoridade e punição. Piedade Gralha

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