Artigo

Outra vez o Ensino Recorrente??? Um incompreensível erro político | Recurrent Education again ??? An incomprehensible political error

Ana Benavente. Artigo publicado em junho de 2012

Porquê voltar ao ensino recorrente, como resposta aos jovens e adultos que procuram continuar a sua qualificação escolar? Uma solução que há muito provou ser desajustada e ineficaz. PORQUÊ? Temo que não interesse a este governo ter cidadãos mais informados, mais seguros, mais cultos, com gosto de aprender. Contrariando todos os discursos sobre “empreendedorismo” (palavra de que a União Europeia tanto gosta), temo que lhes interesse manter os níveis de baixas qualificações. Porque saber é poder. Porque uma sociedade mais letrada se torna mais exigente. Consigo e com os outros. E isto é não só um erro como um insulto a todos os que, nas últimas décadas procuraram a educação para “libertar” as pessoas e não para reforçar mecanismos de controlo, servidões e ignorâncias. É muito grave.


1. Logo, logo, a seguir a Abril de 1974, a Alfabetização de Adultos estava na ordem do dia. A Direcção Geral de Educação Permanente e, mais tarde, de Educação de Adultos (as designações não são inocentes), procurou construir respostas para todos aqueles que durante as décadas anteriores tinham apenas concluido a quarta classe ou nem sequer a tinham terminado. O número de analfabetos era elevado, a metodologia de Paulo Freire estava na ordem do dia. No entanto, rapidamente nos apercebemos que, tal como já acontecia noutros países, era urgente criar condições para que os adultos pudessem desenvolver a sua cultura, a educação e a formação, para além da alfabetização sob forma de acções pontuais.
Diversos estudos mostraram, nos anos 70, que o melhor caminho não era o da escolarização dos mais velhos mas sim o de ofertas sediadas em espaços de colectividades, de associações ou de autarquias, com modos de trabalhar adequados aos que procuravam aprender mais.
Festejou-se, em Setembro, durante muitos anos, o dia Mundial da Alfabetização de Adultos.
Os níveis de escolarização de um povo têm influência a todos os níveis da nossa vida individual e colectiva: na informação que procuramos e que entendemos, nos percursos pessoais, profissionais e cívicas que fazemos, no modo como criamos os nossos filhos, como actuamos no nosso trabalho e ainda nas nossas expectativas e na própria visão do mundo em que vivemos e do nosso papel nesse mundo.


2. Depois de diversos “acidentes de percurso”, ligados a governos que se vão substituindo e alterando opções, chegamos a 1995 com três dados fundamentais sobre esta questão:

  • O 1º Estudo Nacional de Literacia que coordenei, evidenciava a existência de cerca de 10% de analfabetos literais (de mais de 15 anos) e mostrava ainda fracos níveis de utilização da leitura, escrita e cálculo na vida real de cada um. Tal situação, já estudada na América do Norte (USA e Canadá) e em diversos países europeus, tem grandes custos humanos, culturais, sociais e económicos. O sector da saúde, por exemplo, gasta milhões porque as relações entre prescripções médicas e cidadãos, doentes ou em prevenção da doença, são mal compreendidas e mal aplicadas e porque a relação com os medicamentos é menos adequada (quem lê e percebe a “bula” que vem na caixa de cada medicamento?). Esta situação tem ainda uma forte consequência nos resultados escolares dos mais novos, pois as expectativas, os hábitos culturais, as relações com a escola estão – e continuam a estar – profundamente marcadas pelo meio social e pelo grau de escolarização e de literacia dos pais e outros adultos das diversas comunidades em que vivemos. Não posso deixar de citar o trabalho do projecto ECO-Escola Comunidade realizado nos anos 80, com uma equipa interdisciplinar, no Bairro da Ajuda, sobre as relações entre a escola e as crianças de meios populares (ver “Do Outro lado da Escola”, Benavente, Ana et. al,1992/2000 (2ªed.) Editorial Teorema), em que estava patente a ausência de expectativas escolares dos pais quanto ao futuro dos filhos e a sua dificuldade em acompanhar a escolaridade dos mais novos. Acrescente-se que a própria OCDE (insuspeita de ser “filha de Rousseau”) tinha assinalado há muito as consequências económicas negativas do analfabetismo.
  • Sabíamos então que o ensino recorrente – ensino noturno, em horário pós laboral, para adultos, apesar de estar organizado em “unidades capitalizáveis”, procurando não reproduzir a pedagogia expositiva e disciplinar dos mais novos, tinha uma taxa de abandono elevadíssima (menos de 4% terminavam os graus de escolaridade iniciados e havia zonas do país que nem atingiam 1%). A maior parte dos professores ficava praticamente sem alunos até ao Natal. Uma das razões, que se vai repetir décadas mais tarde, é a da rede de oferta: nem todas as escolas tinham ensino recorrente e havia assim os trajectos, por vezes distantes e dispendiosos, a acrescentar às horas de trabalho. Elaborou-se então uma rigorosa avaliação, a pedido do Ministério da Educação, coordenada pelo Prof. Jorge Pinto (Ensino Recorrente: Relatório de Avaliação, ME:1998) que confirmou a ineficácia e o desperdício de mais de 300 milhões de euros anuais.
  • Sabíamos que era urgente que a Educação de Adultos encontrasse novos caminhos, positivos, que influenciassem o conhecimento e a qualidade de vida das pessoas, a qualidade do trabalho que realizam e da sua vida cidadã. Uma das premissas era a da articulação, tanto para jovens que tinham abandonado a escolaridade, como para adultos, entre a escolarização e a formação (não é viável pedir a alguém desempregado que faça um curso especificamente para obter um grau escolar para depois e só depois aceder à formação profissional). A outra premissa (inovadora entre nós,mas há muito praticada em muitos países), foi a de considerar os conhecimentos que cada pessoa adquiriu ao longo da sua vida e de, com os necessários complementos, reconhecer e validar essas competências.

3. Foi assim, que, através dum processo difícil, moroso e que pouco interessou as Confederações patronais representadas no Conselho Económico e Social, se criou a Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos (ANEFA), os cursos EFA e os primeiros Centros RVCC (Reconhecimento, validação e certificação de competências), envolvendo a Educação e a Formação profissional, com sede em dois Ministérios distintos. Tal trabalho exigia critérios claros, bem construídos, e formadores independentes, assim como um acompanhamento e avaliação regulares, de modo a que não se tratasse de uma qualificação “mais ou menos” ou uma qualificação de “segunda”. Por isso, se iniciou o processo com as certificações do 6º ano de escolaridade só depois avançando para os de 9º ano e, posteriormente, em projecto ainda no início dos anos 2000, para o 12º ano. Os primeiros Centros RVCC funcionaram, em associações económicas, sociais e culturais, alargando os parceiros envolvidos neste processo e “fugindo” à sua escolarização.
Claro que havia impaciência da oposição (então constituida pelo PSD e o CDS) quanto à abertura de mais centros nos distritos dos senhores deputados. Mas convinha avançar com critérios seguros, claros e rigorosos. Em 2001, algumas dezenas de centros estavam em plena actividade e eram fonte de inspiração para muitos parceiros europeus. Estava previsto o seu alargamento gradual.


4. A partir dos governos seguintes e, em particular, com o de Maria de Lurdes Rodrigues, passa a ser o programa de governo a determinar o número de adultos que devem terminar o 9º e o 12º ano, multiplicam-se os Centros, dos quais um grande número funcionando em escolas. Cria-se a Agência Nacional de Qualificação que coordena o processo.
Se, para mim, esta extensão numérica imposta “de cima” desvirtuou a qualidade do trabalho realizado, não deixou de haver Centros de Novas Oportunidades (ex-Centros RVCC) a funcionar bem e outros menos bem, como em todas as instituições. Participei nos trabalhos de alguns e tornava-se evidente que havia potencialidades que pediam, de novo, uma avaliação reguladora, a que o país tinha direito.


5.Com a eleição do actual governo e sob o pretexto da “crise”, o Ministro anuncia que vão ser fechados muitos “CNO’s” e lança-se, junto da opinião pública, a suspeita de trabalho feito apenas para as estatísticas. É aqui que estamos: primeiro decide-se e depois pede-se um estudo. Pelo que li na comunicação social, o dito estudo, divulgado depois do anúncio do fecho de alguns CNO’s, conclui que apenas um pequeno número das pessoas que aumentaram a sua escolarização melhorou economicamente a sua vida profissional. Mas se isso poderá ser verdade, não há muitas outras dimensões significativas em que a certificação e aprofundamento das qualificações escolares foi e é significativa?
Alguém duvida da importância que tem, para cada adulto que procura a sua valorização, alcançar uma meta que lhe foi negada ou não pôde alcançar mais cedo? Ganha-se proximidade com o conhecimento, ganha-se segurança em si própri@, ganha-se curiosidade, ganha-se interesse pela aprendizagem. Há estudos, uns já realizados, outros em curso, que mostram que estes adultos se tornam mais próximos de hábitos de leitura, mais seguros no trabalho que realizam, mais participativos, mais interessados pela escolaridade dos seus filhos. Tínhamos aqui, com as correcções que uma avaliação (participada pelos próprios CNO’s, quanto a mim) séria e plena determinaria, um caminho construído e a consolidar que agora se destrói. E o mais grave é que se volta a uma solução que há muito mostrou que não responde às necessidades.

PORQUÊ? E QUE ENSINO RECORRENTE?
Estas questões exigem debate público, com a participação de todos os que têm analisado e aprofundado o estudo de uma área – a Educação de Adultos – que está, hoje, em Portugal, nas mãos dos que só têm cifrões nos olhos e consideram que, se uma qualificação não se traduz imediatamente em emprego ou melhor salário, acabe-se com ela. Cada vez que se prolonga a escolaridade obrigatória (agora consagrada até ao 12º ano), criam-se exclusões em relação aos mais velhos. Esse problema não preocupa o actual governo. Ana Benavente

 

« O que se passa com os Centros Novas Oportunidades? O Retorno ao Ensino Recorrente?! | What´s the problem with the New Opportunities Centers? The Return to Recurrent Education?! - Uma Escola: dois olhares | One school: two views »