Artigo

[Nóvoa, A., & Lawn, M. (Ed.) . (2002). Fabricating Europe – the Formation of an Education Space. Dordrecht/ Boston/London: Kluwer Academic Publishers]

Reler é muitas vezes reencontrar o sentido de um alerta, é procurar entender como chegámos até aqui. Uma década após a publicação desta obra, revisitá-la é mais do que temer males anunciados. Tem o sabor amargo da confirmação.

Reler é muitas vezes reencontrar o sentido de um alerta, é procurar entender como chegámos até aqui. Uma década após a publicação desta obra, revisitá-la é mais do que temer males anunciados. Tem o sabor amargo da confirmação.

Escritos a uma distância de 5 anos da assinatura do Tratado de Lisboa, também conhecido como Tratado Reformador (qual réplica da Constituição europeia não ratificada pela França e Holanda) e ainda longe da crise financeira que nos dias de hoje vai minando os alicerces da Europa social, os textos que constituem a publicação só podem ser revisitados numa leitura filtrada pela distância temporal que lhes conferirá a dimensão da relatividade.

Esta publicação nasce na sequência de um Seminário realizado em Lisboa que juntou investigadores europeus à volta da emergência da ideia de um Espaço Europeu de Educação, ideia “ambígua e imprecisa” no dizer dos seus organizadores, António Nóvoa e Martin Lawn, também autores/coordenadores da obra em questão. Surge em 2002 na esteira do Conselho Europeu de Lisboa em 2000 que fixou como objectivo estratégico até 2010 constituir a economia mais dinâmica e competitiva do mundo.

Procurar respostas para a questão “Como poderá a Europa concretizar a ideia de um espaço de Educação comum” é o propósito principal do livro, recorrendo a um conjunto de contribuições teóricas, a par com a ambição de “to meet the task of creating analyses and responses”, ou seja, tomar em mãos este espaço imaginado como um objecto de estudo em si, numa abordagem tida como inovadora ao ter em conta que a investigação tem incidido preponderantemente na análise dos efeitos da europeização nos contextos nacionais.

É com este intróito que os autores/ coordenadores da publicação nos remetem para a leitura dos textos, escritos a várias mãos, visões de uma Europa, que dizem em construção, em que se procuram afinidades e divergências e se encontram efeitos perversos, imagens não coincidentes, irreconhcíveis entre si, representações de olhares diversos que aqui e ali se complementam ou contradizem. Uma Europa assim pensada será por excesso de presente e de futuro como a vê António Nóvoa? Ainda cheia de um passado legitimador da sua matriz institucional e já cheia de um futuro inventado que as decisões políticas vão tornando real.

Para David Coulby a Europa que se quer unida é feita de fluxos culturais diversos e identidades múltiplas, de redes sem fronteiras que tendem a expandir uma cidadania cosmopolita pós-moderna com efeitos sobre a educação, que se prepara para excluir escolas e currículos que não se integrem nesse “espaço de redes emergentes “, que não se confrontem com a complexidade do contexto globalizante, confinados no dizer do autor a “configurações nacionalistas”. Com base neste conceito de espaço de fluxos, Yasmin Soysal defende que se desvi o debate sobre a identidade europeia inevitavelmente presa ao espaço estado-nação e a negociação entre governos e se dirija o olhar da investigação para o campo menos formal que é o dos espaços educativos onde têm lugar os processos de acção e se constrói a Europa como categoria identitária. Parte, assim, dos manuais escolares, dos currículos e da acção dos agentes educativos e organizações internacionais e conclui que o espaço público europeu é instável, aberto a permanente alargamento e imprecisão, não isento de conflitos e ruturas.

Dir-se-ia que estas redes que se constituem como estruturantes de uma Europa em construção e, com ela, de uma educação específicamente europeia (é disto que falam quando falam de governação) não têm dono nem cabeça. Mas têm e até produzem linguagem própria como refere Martin Lawn – “globalization”, “society of knowledge”, “modernization”, “accountability” e “democratization” -, para ele simbolos culturais (carregados de ideologia, dizemos nós) e práticas, em conformidade com os documentos da política europeia, processo mediatizado por “funcionários do governo europeu”e corporações que operam em Bruxelas e se movem nas administrações nacionais e nas empresas privadas.

Esta linguagem carregada de racionalidade tecnocrática não é neutra como lembra Ronald Sultana, alertando para o pensamento colonizador que associa educação de qualidade ao processo produtivo que, comparativamente, melhor sirva os interesses do mercado. É aos agentes educativos que este autor incentiva a “examinar criticamente como são construídas as representações da Europa e dos Europeus, com que propósito, por quem e com que composição”.

Numa revisão das normas e regulamentos que constituem a política europeia para a educação, António Nóvoa considera que estes documentos, embora com fraco estatuto legal, assumem uma poderosa influência no modo de pensar a educação na Europa. Sublinha então três dos temas prioritários da agenda do Conselho de Educação (2000): “Empregabilidade” como um problema de educação e da responsabilidade individual dos cidadãos, “Comparabilidade” como modo de governação que usa benchmarks, muitos indicadores, resultados e orientações para medir a qualidade e a mudança. E “Mobilidade” para a criação do novo cidadão europeu imaginado.

Foi pois com um sabor amargo que relemos os textos. Os sinais estavam dados.

Senão vejamos:
De que falamos quando falamos da Europa com a economia mais dinâmica e competitiva do mundo? De uma força de paz e de solidariedade, de desenvolvimento e progresso social ou de uma força de competição face a outras potências económicas numa moldura técnica sem alma, mas imbuída de ideologia promotora da divisão humana?

Quem manda nessa mão invisível dos ratings que separa os Estados conforme o seu poder económico e geopolítico e sufoca os mais fracos? Não são os mesmos que dividem o campo educativo entre escolas adequadas à educação de elites e as que são para os outros? ou que implementam currículos a duas medidas, os mínimos para a maioria, estabelecendo as competências básicas necessárias à empregabilidade desqualificada? Não são os mesmos que promovem a associação das desigualdades sociais à incapacidade ou falta de esforço individual para a aprendizagem, culpabilizando o cidadão pela situação de desemprego? E que o escrutinam com exames escolares desde a mais tenra idade?
Atentemos nas prioridades estabelecidas pela atual Comissária europeia para a educação, cultura, multilinguismo e Juventude, Androula Vassiliou.

“My priorities follow the Commission’s broad policy guidelines for the next five years:


• Improving skills and access to education and training focusing on market needs
• Increasing learning mobility and opportunities for young people
• Nurturing cultural expression and creativity for all


Improvements in education and innovation are needed to:


• Help Europe compete globely
• Equip the young for today’s job market
• Address the consequence of the economic crisis”


É convicção dos dirigentes europeus de que a primeira missão da escola é apoiar os mercados. Impôe-se que, como apela Ronald Sultana, se questione criticamente quem fica a ganhar e quem perde na actual construção da Europa e quais as implicações na educação.

Graça Aníbal

« [Ravitch, D. (2010). The Death and Life of the Great American School System. How Testing and Choice Are Undermining Education. New York: Basic Books, 215 p.] - [Freire, Paulo. (1993). Política e Educação. São Paulo: Cortez Editora.] »