Artigo

[Serres, Michel (2012). Petite Poucette. Paris: Le Pommier Collection Manifestes]

Petite Poucette é o título do recente livro do filósofo e escritor francês Michel Serres, nascido em 1930, título que inevitavelmente nos traz à memória a figurinha com o mesmo nome do conto fantástico que, há mais de um século, Hans Christian Anderson escreveu, que ouvimos contar aos nossos pais, avós e bisavós e de que a nova Petite Poucette provavelmente nunca ouviu falar (...)

Petite Poucette é o título do recente livro do filósofo e escritor francês Michel Serres, nascido em 1930, título que inevitavelmente nos traz à memória a figurinha com o mesmo nome do conto fantástico que, há mais de um século, Hans Christian Anderson escreveu, que ouvimos contar aos nossos pais, avós e bisavós e de que a nova Petite Poucette provavelmente nunca ouviu falar. Era a história de uma menina de uma antiga europa que vivia no campo e era filha de quem amanhava a terra, lidava com bois, ovelhas e galinhas e falava com bruxas. Nunca tinha saído do sítio onde nascera e do resto do mundo não conhecia nada. Ela ou os seus filhos provavelmente souberam de guerras, “cemitérios, feridos, heróis, pátria, bandeiras ensanguentadas, monumentos aos mortos”. Viveram quanto muito meio século e poucos recursos tinham para aliviar as dores. Muito pouco tinha em comum com a jovenzinha de que o filósofo nos fala e que observou sentada à sua frente no Metro a dedilhar com os dois polegares o telemóvel numa impressionante destreza e velocidade e que por isso ele apelidou de Petite Poucette. Esta é uma rapariga europeia do séc XXI que tal como os seus companheiros “ nunca viu boi, nem vaca, nem porco, nem ninhada”, vive na cidade, provavelmente até aos cem anos, acede a quem quer pelo telemóvel, com o GPS vai a todos os lugares sem se perder, comunica com jovens de todo o mundo, apreende as imagens que lhe passam pelos olhos em intervalos de sete segundos, nas suas mãos tem um computador onde encontra e guarda toda a informação, realiza operações racionais complexas, consegue integrar equações diferenciais. Se nos encantámos quando crianças pela Petite Poucette do antigo conto foi porque ela, na sua assombrosa transcendência, concretizava a possibilidade de um mundo onde a fealdade, a ignorância e a dureza dos dias de então tinham sido vencidas pela solidariedade e pelo amor e se acedia a toda a felicidade. É também um mundo novo que Michel Serres antevê perante aquela imagem, deslumbrado com as extraordinárias capacidades que o desenvolvimento tecnológico proporciona aos futuros homens e mulheres corporizados naquela rapariga. E, de súbito, tem uma visão: tal como Saint Denis degolado subiu o morro com a cabeça nas mãos, a máquina que a sua Petite Poucette competentemente manuseia é afinal a sua virtual cabeça. Nela se objectivam as faculdades da memória, da imaginação e da razão de que a jovem necessita e onde encontra toda a informação que procura, aquilo de que não se lembra, as imagens de mundos reais e irreais, e, “melhor ainda, dez programas que conseguem tratar inúmeros dados mais depressa do que ela alguma vez poderia fazer”. E Michel Serres constata: os processos psíquicos externalizaram-se nessa “caixa cognitiva objectivada”, nas mãos da Petite Poucette está o saber “objectivo, colectado, colectivo, conectado, acessível” e “dez vezes revisto e controlado”. É uma nova fase das revoluções técnicas que ao longo da história do homem se sucedem e que mudam a sociedade, “uma revolução que tal como outras na história (a invenção da escrita, a invenção da imprensa) modificará a maneira de pensar e agir. As recentes e futuras alterações tecnológicas alteram o cérebro e o comportamento individual e colectivo. Por isso M. Serres encheu o seu livrinho de amanhãs luminosos. A Petite Poucette e os seus jovens contemporâneos surgem como habitantes de um mundo extraordinário onde emerge uma nova humanidade, tão extraordinário como o universo encantado dos contos de Christian Anderson. Vivemos, diz ele, um período só "comparável ao da aurora da paideia" - "à medida que se dão mutações nas tecnologias, metamorfiza-se o corpo, mudam o nascimento e a morte, o sofrimento e a cura, os ofícios, o espaço, o habitat, o estar no mundo". O seu raciocínio assenta em dois conceitos pilares que distinguem as relações sociais que já despontam no novo mundo das estabelecidas pelo velho modelo social: a reciprocidade e a presunção de competência. O velho construiu-se como se "tudo corresse de cima para baixo, dos eleitos para os eleitores, da oferta para a procura" e assim," presumindo a incompetência dos mais pequenos, os grandes patrões, os ministros, os homens de estado... lançam a sua chuva benfeitora sobre eles". Foi este o modelo em que nos fechámos. É este o modelo. Michel Serres antevê um tempo novo, vislumbra uma sociedade que "não se organize apenas à volta do trabalho", não piramidal, de controlo recíproco horizontal, de simetria nas relações, em que se ouçam as vozes de todos, nos hospitais, nas universidades, no espaço público, "vozes privadas, públicas, permanentes, reais, virtuais, barulho de fundo (...) " que correspondem a uma nova democracia em formação". Nos seus oitenta anos o filósofo recusa-se a aceitar um futuro cinzento, antes espera o nascimento de uma nova era que nos conduzirá a uma sociedade mais igualitária. E emocionamo-nos quando, de um modo humilde e quase poético, confessa que quereria ter agora dezoito anos, agora que está tudo por inventar e deseja ter ainda tempo suficiente para poder trabalhar na companhia dos Petits Poucets, jovens "a quem sempre dedicou a sua vida e respeitosamente amou". Seduz-nos perante as possibilidades de um mundo melhor que as tecnologias digitais parecem prometer. Gostaríamos de o acompanhar não fora a descrença que nos persegue, porque o que o presente anuncia, a nós, europeus, em vez do que as extraordinárias potencialidades tecnológicas prognosticam, é o futuro hipotecado de uma sociedade em declínio. O futuro que foi entregue pelos decisores políticos às grandes potências industriais e financeiras que no estado selvagem do capitalismo globalizado utilizam as trocas de informação e de saberes e as extraordinárias potencialidades dos programas de tratamento informático para as grandes transacções financeiras. A chamada "sociedade do conhecimento" não é mais do que a máscara de uma sociedade que faz do saber e da capacidade cognitiva bens comerciáveis. São essas potências, acolitadas por gurus políticos centro-europeus e economistas burocratas de olhar vazio, que controlam e governam as relações sociais para seu proveito porque detentoras do desenvolvimento tecnológico. São elas que têm as cabeças entre as mãos. As cabeças das Petites Poucettes e dos seus companheiros, as nossas cabeças. Como olhar para as e os Polegarzinhos portugueses e ver neles um futuro luminoso? Que país os aguarda onde a mediocridade arrogante de quem decide destrói o que a capacidade da geração anterior, liberta da ditadura, construiu (aumento do nível de vida, diminuição da mortalidade infantil, desenvolvimento do estado de protecção social, expansão do sistema escolar, integração das mulheres na vida activa)? Que farão eles (tão poucos os que ficam) com os destroços de um país com altíssimas taxas de desempregados e uma profunda precaridade no trabalho, com mais de 2 milhões de portugueses em privação material (estudo do INE, Julho 2013), sem qualquer capacidade produtiva, o quotidiano assombrado pela pobreza de pais e avós?

Michel Serres, o professor, ao entrar hoje na sala de aula sabe que os alunos não têm mais a postura de quem aguarda ouvir o seu saber competente. Estão ali também eles detentores de saberes e querem também fazer-se ouvir. E lembra que o ensino constituiu sempre uma oferta que mandava calar os que a procuravam, presumíveis incompetentes. Hoje estes "recusam a oferta para anunciar, para inventar, para apresentar uma nova procura com outro saber". Se “tudo está nos computadores”, diz Michel Serres, então os saberes estão universalmente disponíveis. Se “A finalidade do ensino era transmitir saberes, pois bem, isso está feito”. E explica que se tudo o que pretendemos aprender, se o conteúdo de qualquer ensino está naquela “caixa preta”, se a cabeça não precisa mais de se encher com esses saberes, o que nela fica é “a incandescente alegria de inventar”. O saber está acessível a todos e em qualquer lugar. Uma proposta illichiana? A defesa de um dos hipotéticos cenários apresentados para reflexão pela OCDE, o da descolarização? M. Serres apressa-se a esclarecer em entrevista posterior - "É preciso saber ouvir os estudantes, saber o que eles sabem, escutar a novidade para a compreender". E diz ainda que estas mudanças não o inquietam "pois compreendi com o tempo, em quarenta anos de ensino, que não se transmite uma qualquer coisa, transmitimo-nos a "nós próprios"" (Libération 3 Set 2011).

Lê-se o livro com alguma perplexidade. No confronto com o quotidiano num país em que se vem semeando o medo da vida, duvidamos da clarividência sobre a ruptura civilizacional de que no presente o autor encontra sinais com os quais constrói uma espécie de fábula, um conto de encantar. Apetece-me então servir-me de um aforismo africano referido por Ernst Bloch em "Spuren" (Traces, Paris, Gallimard, p. 133) e que diz que "se a história que foi contada não significa nada pertence apenas a quem a contou, se significa alguma coisa então pertence a todos nós".

Graça Aníbal
 

 

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